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E quando o professor é gay?

o giz é principal material de trabalho do professor. Nesta imagem você vê 6 gizes compondo as cores do arco íris,

E quando o professor é gay? Começo o meu texto com essa indagação. Muitos de nós, gays, passamos por problemas na escola, quando éramos alunos, na verdade há muita coisa a se falar sobre isso. Muitas experiências dolorosas, traumáticas, que vão da infância até o fim da adolescência. Essas experiências marcam muito a gente. Ser descoberto gay na escola, ou sofrer essa suspeição pode ser algo devastador, porque nem sempre se tem ambientes amigáveis, nem todos os gays encontram apoio em quem quer que seja. Esse foi um de meus problemas relacionados à sexualidade. Muitos alunos gays que eu tive nesses últimos anos se apoiavam em amizades, geralmente de garotas e outros garotos como eles, para superarem a barra do preconceito e da rejeição, muitas vezes violentíssima. Na minha época, eu tinha entre meus maiores algozes, as mulheres, igualmente cruéis, más. Não havia apoio nenhum para meu comportamento, por parte de ninguém. Ainda bem que, hoje em dia, nada precisa mais ser assim.

Mas sobrevivi à adolescência, ao Ensino Médio, terminei o século XX já dentro de uma faculdade, com certeza absoluta do que eu queria ser e fazer pelo resto da minha vida: lecionar língua portuguesa e inglesa. E eu levei a sério, terminei a minha graduação e em alguns meses fiz concurso público, tendo sido aprovado e empossado em meu cargo. Tudo isso em um ano. Eu finalmente, tinha um cargo, um salário. Eu estava feliz e mergulhei de cabeça na minha profissão. O magistério é absorvente, desafiador. Para um professor iniciante, pode ser ainda mais. Talvez por isso outras questões de urgência tenham sido postas de lado. Eu queria dominar os códigos, a conduta, as práticas da docência. Eu lecionava para pré-adolescentes e adolescentes durante o dia e para jovens e adultos durante a noite. Não precisei de muito tempo para entender que, como professor, eu era um exemplo sacerdotal para meus alunos. Isso incomoda, mas tem suas vantagens práticas, porque ter uma função sagrada traz respeito. Mas também traz resistência. A mesma que as pessoas têm com a autoridade sagrada em suas vidas, como é o caso da autoridade familiar ou religiosa. Estudantes nem sempre nos veem como pessoas reais, com sexualidade, libido. No início do século, exatamente no ano de 2004, ainda havia muita pudicícia em se tocar em certos assuntos na sala de aula.

Minha primeira diretora era uma pastora evangélica, muito competente como diretora, mas muito discreta e séria. Na época, eu professava o protestantismo, havia entrado nessa religião por influência de minhas tias, irmãs de meu pai e abandonado o catolicismo. Eu gostava do ambiente da igreja, exatamente pela proximidade entre as pessoas, por ser um grupo solidário e que me aceitava, desde que eu fosse normal. Mas normal, de fato, eu não era. Solteiro, vinte e três anos de idade, sem namorada, sem interesse nenhum em ninguém que fosse, não dava em cima das garotas, apesar de não ser tímido, exatamente. Eu sempre tive, e tenho até hoje, de conter meu humor e criticismo, para meu próprio bem, e isso me transformava numa incógnita. Eu não era o tipo que morria de vergonha de existir, mas cuja existência não seguia aquele padrão masculino de sempre. Na minha profissão, foi fácil achar um refúgio, assim como na igreja. Havia outros tantos como eu lá. Pessoas que jamais namoravam, jamais se casavam, ninguém queria saber da vida deles, até certo ponto. Até certo ponto, repito.

Quando eu entrei nessa igreja, em 1996, eu fiquei sabendo de fatos muito estranhos, uma espécie de excomunhão coletiva de vários membros do sexo masculino por causa de um evento bizarro. Uma reunião fraternal na casa de um deles acabou em contato sexual entre os rapazes. Isso gerou muita polêmica. Nesse meio tempo, eu conheci outras igrejas e as frequentei, depois retornei à igreja de onde eu havia saído, foi quando a minha sexualidade aflorou e eu resolvi, por minha conta e risco, manter contato com outros rapazes. Portanto, quando eu entrei para o magistério, havia um tempo que eu sabia que eu era gay. Na prática, eu esperava que isso passasse um dia, eu esperava magicamente que conhecesse uma garota, que me interessasse por ela e isso gerasse a tão esperada redenção de meu comportamento. No entanto, um esforço de honestidade da minha parte não me permitia abusar de ninguém. Nunca me aproximei de nenhuma garota a fim de conseguir o tão necessário salvo-conduto de sexualidade normal. Assim fui trabalhando minha solteirice, minha dedicação ao magistério, minha vida dupla noturna, às vezes vespertina, os encontros silenciosos em ambientes extremamente privativos, ninguém sabia, ninguém controlava, ninguém via.

E deus? Naquela época, era Deus, com D maiúsculo. Ele perdoava, ele ouvia cada uma de minhas dores, lamúrias, eu achava que ele secava minhas lágrimas e me perdoava porque, num futuro muito próximo, eu poderia ser quem eu quisesse, eu só precisava pedir. Com a divindade eu me entendia em minhas muitas orações diárias. Eu temia mesmo a opinião alheia, as pessoas, os estudantes, seus pais, o sacerdote, as pessoas da igreja. Enfim, eu acabei não conseguindo suportar esse peso. E tudo começou por minha própria causa. Aos vinte e quatro anos (não é invenção, esse número), eu sofri uma forte perseguição. Eu dava aulas de inglês num colégio de Ensino Médio, substituindo uma amiga de licença maternidade. Um dia, os alunos da escola começaram, durante a aula, a me perseguir e a questionar minha sexualidade, chamando-me de viado na sala de aula. Eram conversas entre risos, até que um “corajoso” disse isso, obviamente porque não se sentia obrigado a obedecer a um professor gay, alguém abaixo dele na cadeia alimentar. Isso continuou por um certo tempo, até que um dia eu fui obrigado a chamar a atenção de um deles de maneira incisiva. Ele me revelou que trabalhava no mesmo local que meu irmão, que havia contado coisas interessantes ao meu respeito. De fato, o garoto sabia que eu era solteiro, que nunca namorava, que tinha uma vida no mínimo diferente daquilo que muitos esperavam. Isso foi o suficiente para uma sessão de inquérito da minha vida em sala de aula. Consegui contornar aquilo com uma boa bronca. Em casa, tomei satisfação com meu irmão, que afirmou ter achado intrusivo e muito suspeito o interesse desse colega de trabalho. Depois de ter sido várias vezes incomodado por esse cara, o meu irmão perdeu a paciência, tendo perguntado se ele tinha interesse em mim. Isso gerou a raiva, que por sua vez gerou o desejo de me perturbar em sala de aula, por despeito. O cara teve a sua sexualidade questionada por meu irmão, então ele iria me lascar em sala de aula para dar o troco. Mas isso não foi tudo. Esse garoto, que tinha esse interesse perturbador se calou. Mas outros não.

Um dia, dois dos estudantes dessa sala de aula e outro de uma escola vizinha em que eu trabalhava, perseguiram-me, xingando na porta do colégio, atirando pedras e frutos de uma árvore em mim, enquanto eu caminhava. Virando para trás, após a calçada e o muro ao meu redor terem sido atingidos, eu pude vê-los correr e se esconder. Fiquei em pânico. Eu tinha que retornar àquela sala de aula em dois dias para continuar meu trabalho, então em pânico, liguei para a diretora e relatei o ocorrido e o meu desejo de abandonar a escola, assim como eu iria imediatamente a uma delegacia registrar queixas contra aqueles estudantes agressores e seus responsáveis. Ela me impediu de fazer isso e marcou uma reunião, na qual os estudantes me pediram desculpas e culparam totalmente o garoto de outra escola, que havia se evadido e não voltara mais nem à escola onde estudara, nem à porta do colégio onde eu estava trabalhando. Essa experiência me deixou em total pânico, mas foi catalisadora de algo muito importante em mim. A partir daquele momento, eu passei a pensar em mim mesmo e em modos de me proteger. Depois de muito pensar, eu resolvi me assumir, foi um processo lento e delicado, não foi de um dia para outro. Aliás, um longo ano se passou até que eu tivesse coragem de me informar, de descobrir quem eu era e de me permitir um mínimo de honestidade comigo mesmo. Fiz alguns amigos gays pela Internet, já que eu não encontrava pessoas como eu mesmo na minha cidade e logo tive a coragem de viver uma vida muito mais plena. Por isso, mudei-me da minha cidade, morei na capital e continuei com minha carreira de professor, arrumei um namorado, muita coisa destravou na minha cabeça, passei a ser mais aberto para compreender o mundo ao meu redor, abandonei de vez as posturas rígidas que eu tinha.

Não vi problema nenhum em falar abertamente sobre minha sexualidade com professores e estudantes onde eu trabalhava, isso me deixou mas livre, menos preocupado com a perseguição que visava revelar isso para o mundo, e, de fato, passei por pouquíssimos problemas de preconceito com relação a isso por mais de uma década. Até que chegou o ano da graça de 2018. Nós gays, muitas vezes estamos muito absortos em nossos modos de viver, nem sempre entendemos que as pessoas podem nos ler de formas diferentes. Novamente, em março de 2018, fui vitimado de preconceito na sala de aula, por ser gay. Dessa vez, não me ofenderam porque eu estava escondendo, mas por maldade mesmo. Por estarmos numa época em que as pessoas se dividiram em grupos do bem lutando contra o mal, eu era o representante desse mal. Um professor gay que falava abertamente disso nas suas redes sociais. E foi por esse canal que as coisas aconteceram. Tive minhas redes sociais vasculhadas, falas, piadas e outras coisas foram expostas em grupos da escola. Fizeram piadas em forma de meme de mim e de outros colegas, todas de caráter difamatório e calunioso. Foram duas semanas infernais tendo de me explicar, esperando que a direção da escola tomasse algum tipo de atitude, o que de fato aconteceu. Mas ninguém quis discutir aquilo comigo, eu passei a ficar deprimido e com crise de ansiedade. Fora da sala de aula, os estudantes eram hostis, agressivos, passei a temer um ataque, como acontecera antes. Esse estresse, somado a outros problemas de origem pessoal, levaram-me a adoecer e buscar ajuda de um psiquiatra. Passei setenta e cinco dias de licença, não retornei mais àquela unidade, dei outro rumo à minha vida.

Eu já estava acostumado a ser gay no trabalho, a viver isso de maneira aberta, foi uma surpresa horrorosa sentir hostilidade dessa maneira. Eu me senti horrível, no meio de uma guerra involuntária, vítima de jovens agressivos, gritando nos corredores da escola que iriam bater em mulher e viado, depois que o presidente em que iriam votar fosse eleito. Uma onda de chauvinismo fascista inundava tudo e foi assim até que a tal eleição, de fato, aconteceu, o cara foi eleito e a realidade das coisas se mostrou tal como está agora. Mas os movimentos finais dessa sinfonia de loucuras não foram fáceis de suportar, nem sendo professor gay numa escola pública, nem sendo professor, somente, nem sendo apenas gay. Esse drama ainda não teve seu final, espero que os próximos atos sejam menos trágicos.

Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos
Foto de Sharon McCutcheon no Pexels

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7 respostas

  1. Meu padrinho lecionou História, fez especialização em Portugal, voz mais afeminada, mas quando necessário sabia se impor! Tratado com respeito, por senhor ou professor! Quando visito o site da Escola, além de elogia-lo, os egressos dizem “bons tempos”! O detalhe estar em conciliar a sexualidade com as demais relações interpessoais e, claro dar sempre o melhor de si! Na Faculdade teve uma questão de uma colega que não era da nossa turma “original” mas se formou conosco! Quis tirar foto comigo na formatura e chegou a ouvir comentário numa ocasião ao me dar carona, que não “adiantaria me convidar”: soube se valorizar e valorizar nossa amizade até no dia da formatura!

  2. Gostei muito de fazer a leitura! Gostaria de usar lá no meu Grupo de Estudos para promover reflexões!

  3. Me vi em muitas partes desse artigo. Pessoas como você, que usam a sua voz rumo a revolução, expiram jovens professores, como eu, a seguirem em frente. Obrigado por isso. ?

  4. Compreendo a sua dor, caro colega, também sou professor, só que de história, e gay.
    Nunca sofri tais violências declaradas, mas percebo os comentários e olhares tortos de alguns alunos e até de certos colegas.
    Ultimamente descobri que sou uns dos personagens principais de uma série de memes que visam ridicularizar LGBTIs por parte de um grupinho de alunos que se acham conservadores, mas que, nas horas vagas, gostam de fumar baseado e ouvir funk proibidão, de alguma forma o conservadorismo atual se alojou na mente dos jovens como uma espécie de “contra-cultura”.
    Enfim, o que eu posso dizer é, apegue-se a quem o quer bem, o considera, aqueles que fazem da suas aulas uma experiência de aprendizagem evolutiva. Ao menos é o que eu faço.
    Força colega.✊

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