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É possível amar no armário?

Enquanto a heterossexualidade e a cisgeneridade for à norma, a existência LGBTQIA+ continuará a ser, antes de tudo, política! E ao dizer isso me recorda, dos meus 31 anos de existência até aqui, ligando pontos no passado, quando aos 16 anos sai corajoso e timidamente do armário.

O armário, essa instituição simbólica e panóptica da heterocisnormatividade é algo que ainda assombra as existências LGBTQIA+. Certamente que estamos construindo novas narrativas que está naturalizando outro tecido social que permita estampar nossas cores e amores, porém, diante do grande cenário que nos veste, ainda impera essa norma.

A norma em si não é o problema até que ela te patologiza e marginaliza. Mas a norma, como ser nocivo, não faz isso apenas de modo violento como uma lâmpada que jogam na sua cara gratuitamente na Avenida Paulista ou então quando te atiram de um prédio por descobrir que você é uma mulher trans. Essa, meus caros, é a forma mais escancarada da Instituição Armário. Existem outras estratégias que são tão perversas como essa e que nos mata silenciosamente e impede que justamente vivamos a liberdade de nossos afetos e desejos, pois em suma, é disso que radicalmente a nossa luta busca reivindicar: o direito de gozar de direitos que a norma goza!

E ao me referir ao gozo não estou dizendo daquele que obviamente é feito pelos LGBT e não-LGBT todos os dias, isso é, na privacidade das quatro paredes. Não. O gozo que estou dizendo é o gozo de Eros, de afeto, de poder construir relações legítimas sem que se encontre um desnível social entre os pares.

Quando pessoas heterossexuais e cisgêneras se apaixonam por alguém elas não colocam seu desejo sobre a sombra de nenhum armário, no máximo pode ser um segredo, que rapidamente tem seus expectadores que legitimam a história. No entanto, quando se é LGBT nossas paixões e amores sempre correm o risco de encontrar curiosos, “sigilosos e fora do meio”, não assumidas/dos/des. Portanto, sempre haverá um desnível que acompanha muitas histórias de amores que não puderem vicejar entre os LGBT.

A relação em desnível dos LGBT começa sempre entre um sujeito que é assombrado pelo armário, logo pela lgbtfobia institucionalizada, e por outro sujeito que se assumiu e decidiu romper os grilhões heterosufocantes e desconstruiu, minimamente, sua lgbtfobia internalizada.

Essa relação já começa desigual e com afetos reduzidos ao espaço privado, e quando não completamente silenciados.

O LGBT plenamente assumido precisa negociar seu amor e desejo novamente com o armário, que não é dele, mas de outro. Essa relação começa recortada, cujas margens são bem delimitadas e tem no outro, que está no armário, suas regras.

Logo, o LGBT assumido tem que se ver rendido e começa até mesmo a limitar seus espaços e voz, finge trejeitos que não é seu, máscara sua expressão e volta a reproduzir o comportamento hétero cisgênero, já que ele não pode dar bandeira de seu companheiro/a/e. Afinal, a instituição falida do patriarcado ainda reproduz a ideia falaciosa de que se você tem uma amizade com alguém LGBT no mínimo você também é.

E os desníveis vãos se aprofundando cada vez mais e se provam redes difíceis de serem rompidas na medida em que se oferta pelo sujeito no armário ao sujeito assumido, doses lentas e letais de afeto, carinho, gozo e atenção. Doses inebriantes de uma droga alucinante que em sã consciência você não ousaria inalar. Mas você inala, pois a saída do armário é na maior parte das vezes uma experiência tão traumatizante que qualquer afeto após isso é como uma dose de conhaque ao final do dia.

Na medida em que a relação aprofunda seu desnível as experiências entre os pares desiguais vão se acirrando, tornando-se uma bolha alienante de qualquer coisa que possa simular uma história plenamente saudável de amor que os heterossexuais cisgêneros vivem.

A história é vivida entre finais de semanas escondidos, mensagens cortadas pelo celular, “eu te amo” anônimo, e você descobre-se pasmadamente que se sente confortável no papel de “amigo/a/e”.

Não haverá reuniões de família para vocês. Não haverá apresentações formais de relacionamento e nem pedido de casamento. E muitas vezes, e com certa razão mórbida diante da realidade que se impõe, vai bastar o nada que se tem, pois ainda farão você acreditar que isso é muito.

E é nessa estratégia perversa que vai se naturalizando novamente o discurso “tudo bem ser gay, mas precisa mostrar que é?”. PRECISA! Precisa, pois não se trata de mostrar, mas de viver com harmonia quem se é. A gente não ama confinado, com afetos e gestos espontâneos boicotados. Se você é heterossexual e cisgênero e está lendo esse texto talvez você nunca tenha tido a sensação que é ser beijado em uma praça de alimentação de um shopping e ver pessoas ao redor com cara de espanto, nojo ou repulsa e você ainda pensar que poderá ser hostilizado. Nossos afetos precisam negociar o tempo inteiro com esse sistema cruel para existir.

A minha intenção, reflexiva perante as minhas próprias experiências e de muitos outros LGBT, não é dizer que uma relação em desnível estará sempre fadada ao fracasso e que você deve romper ela. Mas a intenção, ao escancarar essa dinâmica, é para que nos tornemos mais conscientes de que sim, nossas existências precisam ser cada vez mais políticas, nossas relações precisam ser ativistas, nossas declarações precisam ser cada vez mais colocadas como possibilidades narrativas que naturalizem nossos afetos.

Ainda quero ter o privilégio, mesmo que velhinho, de ver um casal LGBT andando de mãos dadas em qualquer lugar que seja, de ir à casa de seu amado/a/e e namorar na calçada sem a preocupação de morrer. Queremos ter até mesmo o simples privilégio de termos sogras e/ou sogros que simplesmente não gostem de nós por simples ciúmes do filho/a/e e não por sermos LGBT.

Para ver mais textos de Sérgio Lourenço, confira sua coluna Queer-se.
Foto de Anna Shvets no Pexels

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