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Deixe

“Deixe que a mão do tempo lhe modele.”

Deixe, Martins e Juliano Holanda

Uma das melhores descobertas musicais que fiz no ano passado foi Martins, compositor e cantor pernambucano. Descobri o Martins através de um show que virou disco que ele fez com Almério, outro cantor pernambucano que eu já conhecia e curtia, e que gravou um disco maravilhoso com músicas do Cazuza. Uma das minhas faixas favoritas desse disco do Almério e do Martins é “Deixe” e um dos versos dessa canção, o que escolhi como epígrafe desse texto, tornou-se uma espécie de mantra para mim desde que o ouvi pela primeira vez: “Deixe que a mão do tempo lhe modele”.

Pensando sobre o sentido e o alcance desse verso, eu acabei me lembrando de uma outra música, “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, canção do final dos anos 60 que se tornou um dos hinos contra a ditadura militar e que diz, no seu famoso refrão:00

“Vem, vamos embora que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”

Pode parecer engraçado (e é) juntar duas músicas que dizem coisas de certo modo diametralmente opostas. Enquanto uma louva o deixar acontecer, a outra clama pelo fazer acontecer. E é claro que cada música tem um contexto distinto e foram criadas em momentos diferentes. Não se trata, para mim, de escolher um lado numa dualidade entre um certo e um errado (embora, por temperamento, eu me incline mais para um deles), e sim de refletir sobre a tensão entre esses dois polos que, pensando bem, sempre esteve presente na minha vida.

Já escrevi nesse espaço sobre minha relação com o que chamei de “imperativo da virilidade”, sobre a culpa que sentia e aprendi a deixar para trás em relação ao que percebia como uma incapacidade e uma falta de vocação e vontade para me tornar um “homem de verdade”.

Dentre os atributos que eu enxergava nessa suposta masculinidade, para mim inatingível, estavam justamente a assertividade e a capacidade ou pelo menos o impulso de fazer acontecer, especialmente se essa postura afirmativa envolvesse algum tipo de confronto. Como me disse recentemente um colega de trabalho, eu não gosto de brigar. Nunca gostei. E não poucas vezes ao longo da minha vida deixei inclusive de emitir opiniões para não criar um conflito que me parecia inútil. Acho o culto da treta, tão em voga atualmente, desagradável e tedioso. E todo o campo discursivo que associa a vida a uma luta, a um combate sem tréguas em busca de um objetivo ou de uma vitória, me dá preguiça e me cansa só de pensar. Para mim, a vida não é uma guerra a ser travada e vencida, é mistério a ser vivido e celebrado.

Dito isso, tenho plena consciência de que há momentos em que a vida exige ação e confronto. Da mesma forma como o fazer acontecer, tomado como um valor em si, parece-me levar a uma agitação estéril e sem sentido, o deixar acontecer levado ao extremo pode desembocar na inércia e na estagnação.

Para mim, o que havia e o que há de problemático na ideia de fazer acontecer é menos a ação em si do que sua associação com uma ideia do masculino que sempre me oprimiu. Não por acaso, mulheres assertivas costumam ser acusadas de terem se “masculinizado”, o que evidentemente não está de acordo com o papel de gênero que se espera delas. Do mesmo modo, eu me sentia diminuído como homem por não me sentir capaz de ser mais firme nas minhas atitudes.

Hoje em dia, eu felizmente sofro bem menos com isso. Por um lado, aprendi a respeitar mais as pessoas que fazem acontecer. Por outro, aprendi a respeitar também a minha tendência em deixar acontecer e a não mais vê-la como uma fraqueza, uma falha, um defeito de fabricação da minha masculinidade deficiente. Pois deixei de acreditar que exista um molde da masculinidade do qual eu me desviei, assim como não existe um molde do feminino.

Existem corpos no mundo, corpos singulares com suas possibilidades e seus limites, e esses corpos atravessam o tempo e são atravessados por ele, às vezes se combinam, às vezes se chocam, sempre se transformam. E, nesse processo incessante, nós como humanos temos a capacidade de intervir com consciência, de decidir quando e como intervir, e porquê.

No fundo, o que me incomoda no culto indiscriminado da ação é o fato de que muitas vezes ela é mera reação. E, quando reagimos sem pensar, movidos apenas pela necessidade de fazer alguma coisa (talvez apenas para provar aos outros e a nós mesmos que não somos uns bananas e não levamos desaforo para casa), normalmente continuamos presos a uma lógica que nos é imposta de fora, perpetuando um ciclo que nos mantém no mesmo lugar. A budista Pema Chödron chama isso morder a isca.

Às vezes, a ação se impõe como necessária e urgente (e, na esfera coletiva, temos vivido tempos assim). Outras vezes, é necessário esperar que as coisas sigam o seu curso, as plantas cresçam, os frutos amadureçam, os alimentos cozinhem, o poço se encha de água, o bebê se forme no útero. O tempo tem seu tempo e, se a gente se permitir resistir ao impulso de agir e parar para simplesmente observar o que nos cerca, poderá perceber o quanto pode ser gostoso sentir a sua mão nos modelando.

PS –  A trilha sonora de hoje traz as duas músicas que inspiraram esse texto: “Deixe”, com Almerio e Martins, e uma gravação do Zé Ramalho de “Pra não dizer que não falei das flores”. E de brinde incluí também “Timoneiro”, com o maravilhoso Paulinho da Viola.

 

 

 

Uma resposta

  1. Embora atrelem o “pragmatismo” como um viés da virilidade, eu diria que esteja mais para a personalidade, tanto que há “Matriarcas” com feminilidade e, “tudo bem” haver ou ter havido mulheres assim! E quando a gente “se antecipa” a um momento “futuro” se evita desgastes, muitas vezes: vindo de família numerosa, sempre quis buscar “meu cantinho” e que bom eu ter pensado assim! Hoje, posso assistir decisões tomadas pela minha irmandade sobre o imóvel de herança Sem me desgastar, até porque serão meus herdeiros no futuro!!! E o tempo, eu diria ser o chamado “fiel da balança”, trazendo a compreensão que podemos conviver com pessoas por longas décadas mas afirmar conhecê-las, nem sempre poderemos afirmar que as conhecemos “plenamente”!!!

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