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Crônica do absurdo

absurdo

Aquela luz, o ar quente que entrava pela porta da sacada aberta, os sons misturados de carros ao longe, o farfalhar das poucas árvores da rua, os passos de alguém no corredor. Aquele domingo mormacento que em alguns momentos a brisa fresca vinha encontrar. Sentado em sua cadeira, não muito perto do parapeito da sacada, mas o suficiente para observar as múltiplas cenas que sua visão era capaz de captar, observar sem muito entusiasmo, mas com certo interesse, ficou apenas deixando os pensamentos livres.

Nu em sua cadeira. Nu e seu cigarro de maconha. Nu e sua taça de vinho enchida por muitas vezes. Nu e a música que tocava baixa no som perto dali, em cima de uma raque. Nu e sozinho.

Olhava para a rua e via uma criança acompanhada de sua mãe, tomando um sorvete pós-almoço, iam andando devagar com aquele sem vontade dos domingos que vão morrendo aos poucos, tentando fazer retroceder a segunda que vem aparecendo ali, logo à esquina. E um carro que diminuiu a velocidade para que passasse sobre uma faixa de pedestre quase apagada um senhor que carregava uma sacola plástica. Do outro lado, já quase a perder de vista, tão limitada esta a dos seres humanos, um homem de mãos dadas com uma mulher de vestido listrado que andava rindo e andavam próximos um do outro e andavam às vezes olhando a vitrine de uma pequena loja de artigos de papelaria e andavam às vezes parando um pouco para descansar ou para aproveitarem mais a companhia do outro e andavam.

Fechou os olhos e ergueu a cabeça de encontro ao sol daquele domingo, sentiu as faces arderem com o calor, às pálpebras ganharem a luz e se tornarem alaranjadas e ficou assim por alguns minutos. Tornou a abrir os olhos e ao invés de ver a rua, os prédios ao longe, a cidade que em suas múltiplas casas e árvores e pessoas e carros e ruas se abria diante de si, olhou para dentro de seu apartamento. Sua sala iluminada por aquela luz, o vaso no canto esquerdo que ora ou outra tinha as folhas de uma planta que se mexia com a brisa. O chão com os tacos de madeira polidos por anos e anos e agora muito gastos. A música despertou algo em si, percebeu que estivera ali tempo demais a observar as coisas sem de fato se prender nelas, que seu corpo estava com gotas de suor, seus pelos escuros tingidos de água salgada. A música que tocava baixinho pelo espaço. Ergueu-se, largou a ponta do cigarro que fumou sem perceber, pegou a taça com um gole de vinho que terminou de beber e se posicionou no meio da sala, seus pés tocavam o tapete macio e então rodou devagarinho, rodou e dançou movimentando os braços como que para sentir a vibração do som. Cosmic Love, de Florence and The machine, era a música que tocava. Deitou no chão, fechou os olhos e lembrou-se de sua adolescência, aquela recém-saída da infância, das descobertas e vontades imperativas que surgem. Lembrou-se das músicas.

Mamãe costumava chegar, muito cansada do serviço árduo, e colocar um cd para tocar, algum que comprou no caminho de volta. Um gosto nostálgico, reminiscência de alguma juventude muito aproveitada. Mamãe tinha perdido um pouco do sorriso quando perdeu papai. Cansou-se tanto e envelheceu alguns anos, teve que pegar para si a difícil tarefa de criar os filhos sem nunca ter trabalhado. Não podia, porque a mulher era de casa. Mas em algum momento ela se libertou não que a morte de papai tenha sido uma libertação, longe disso, todos amavam muito, mas mamãe descobriu uma nova forma de viver, porque precisava descobrir, porque tinha que descobrir. Então, no começo das noites quentes, quando chegava e ligava o rádio, a música enchia a casa e ela acompanhava cantando, muito afinada, as músicas que tanto gostava.

Às vezes era um cd do Michel Jackson, outras de flash back, outra era de Elis Regina. A rádio sintonizava, automaticamente, na 101.7 Alpha FM, tocando músicas internacionais das quais ela lembrava de dançar nas discotecas. Ouviu tantas vezes ABBA, através de sua mãe, que levou o costume de ouvi-los já na sua idade de adulto. Ouviu tanto as músicas dos artistas nacionais da MPB, que era tudo do que podia gostar.

A lembrança se foi, os olhos fechados um pouco úmidos traziam uma semiescuridão bem vinda naquele momento, a música não tocava mais. A taça vazia e a garrafa descansavam no chão ao lado, o calor permanecia apesar da tarde que acabava. Abriu os olhos apenas para observar o céu ganhar um tom alaranjado e tons rosa e roxo, o tom crepuscular ganhando espaço enquanto o sol deitava-se no horizonte. Noite. Tudo escuro, nenhuma luz acessa na sala. Ergueu-se.

O absurdo do dia, o absurdo das imagens que vão e vem, o absurdo do tempo que não para, o absurdo do inexorável, o absurdo das cenas prosaicas, o absurdo do espaço, o absurdo do tempo, o absurdo de Deus. O absurdo da vida. Diante disso tudo, o que era se não um indivíduo ínfimo e por isso mesmo grandioso capaz de maravilhar-se com o absurdo? Rir-se de tudo. Rir-se das coincidências, rir-se porque se tem vontade, rir-se porque é preciso, rir-se diante Deus, rir-se diante do nada, rir-se.

Respirou fundo e segurou o ar ali dentro, no pulmão, o peito estufado e soltou devagar aquele ar. Ergueu os braços, girou. Mexeu as pernas, sentiu o corpo movimentar-se, sentiu a nudez dançar aos poucos e ali no escuro do fim do dia, no escuro da sala, no escuro dos olhos fechados, no escuro do silêncio, no escuro do sem música, dançou. E porque a felicidade era tamanha, sem poder segurar dançou! Dançou sem música como um louco iluminado.

Por Raphaelly Bueno,
para sua coluna Contraponto

Foto de Artem Beliaikin no Pexels

Uma resposta

  1. Fantástico seu texto, amei como passou da descrição subjetiva do ambiente à memória. Muito importante termos momentos de intimidade própria e encarar os absurdos, o insólito com leveza.

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