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Crônica amassada, retirada da lixeira

Houve um tempo em que eu escrevia à mão. Nunca escrevi, de fato, à máquina de escrever. Não tinha uma, só minha. No entanto, cheguei a ter, emprestada, aqui em casa, uma, mas foi por pouco tempo. Meu irmão tem uma dessas, em bom estado de conservação. Hoje em dia, é sempre um transtorno ter que comprar a fita com a tinta. Nem sempre as papelarias querem pedi-la, já que as pessoas aposentaram suas geringonças. Mas pode-se comprá-las pela internet: um pouquinho de paciência e a certeza de que o frete é mais caro que o produto acompanham a caixinha com os rolinhos de fita até a casa do hipster que ainda faz questão de usar.

Mas eu sei escrever à máquina, porque fiz datilografia em 1993, 1994. E aprendi a escrever com rapidez e eficiência na máquina manual, a minha favorita.  Até que, no mesmo ano, eu também fiz um curso de computação que me ensinou editoração eletrônica de textos no saudoso Wordstar. Daí, nunca mais eu precisei de uma máquina de escrever na minha vida. O motivo é bem mais simples do que se imagina. O primeiro deles é que eu não precisava escrever para publicar. Ninguém queria ler o que eu produzia. O segundo é que, quando eu de fato precisava escrever e entregar algo (trabalho impresso em papel), valia a pena pagar para imprimir. Então demorei muito tempo a ter um computador com impressora na minha casa.

Mas comprei, em 2004. Poderia imprimir quantos papéis escritos por mim eu quisesse. E pudesse, já que a tinta da impressora era caríssima. Escrevia meus textinhos e ficava ali, lendo-os, revisando-os com um lápis na mão, como se eu precisasse fazer isso mesmo. Mas não precisava, porque ninguém me leria. Ninguém se interessaria por aquilo. Enfim, eu acabei por desistir do intento de escrever várias vezes entre vinte e trinta anos de idade. Eu não sabia como publicar. Na verdade, depois de descobrir como publicar, eu fiquei ainda menos animado. Eu tinha que preparar originais legíveis, registrados ou não na biblioteca nacional e mandá-los pelo correio ou pela Internet para editoras que jamais os leriam. Até porque, mesmo escrevendo com talento, um escritor pobre fica no fim da fila. Os mais ricos têm prioridade em ser publicados. Eles sempre têm vez e voz. Mas eu tive uma curta vida literária, nos anos entre 2004 e 2006. Foram três anos de encontros com amigos escritores, escreventes da cidade. Mais ou menos da mesma idade e geração, passávamos nosso tempo escrevendo para nós mesmos e, à moda dos escritores do passados, reuníamos no conforto da casa de algum de nós para lermos a nós mesmos e nos debatermos. Quando eu resolvi me mudar da minha cidade para tentar a vida num lugar maior, eu era um escritor reconhecido entre outros cinco ou seis colegas. E foi assim que conhecemos o furacão Larissa Marques.

Moradora de Sobradinho, DF, nos arredores da capital do país, Larissa veio com a expertise da escritora independente e nos encontrou, aqui na cidade, para um momento em que ela compartilhou de si, de seus textos. Ela apresentou para nós algo que não éramos: escritores em tempo integral. Ela era. Apesar de ter trabalho, de ter uma família para cuidar, ela escrevia. E muito. Seus textos transbordavam de uma verdade feminina forte, intensa. Acompanhei-a por mais de dez anos, comprei livros seus, que ela editava sob encomenda para vender às unidades, quando captava leitores por meio de seus textos na Internet. Ela produzia muito. Não sei o que aconteceu com Larissa. Por volta de 2015 ou 2016, não mais tive contato com ela. Não a encontro mais nas redes sociais, é uma pena. Perdi os seus livros na mudança da Cidade de Goiás para cá. Acho que os deixei inadvertidamente na estante da biblioteca da minha casa. Os livros dela e o manual de culinária de D. Zizi, que eu tanto gostava. Mas é tarde demais. Jamais terei seus livros de volta. No entanto, alimento a esperança de poder entrar em contato com ela novamente. Ela foi uma transpiração importante na minha curta vida como escritor.

Nos últimos anos, não me faltam computadores, teclados, canetas, papéis ou ainda impressoras para que eu possa ver minhas letras registradas. Querendo alçar voos mais importantes, um dia desses eu escrevi um livro. Peguei vários textos antigos e fui juntando, reescrevendo, depois sentei-me na frente do computador e disse: eu consigo terminar. Dei-me um mês de férias para fazer isso, foi bem mais rápido do que eu imaginava. Eu me vi, por um instante, como Larissa Marques: um livro até grosso de poemas na mão. Corri a colocá-lo à venda na Internet. Acho que duas pessoas compraram desde 2019. Em 2020, apesar do péssimo resultado espontâneo do meu primeiro livro, eu escrevi outro e o coloquei lá. Ambos nem existem mais nesse espaço de vendas on-line exatamente porque eu não consegui conquistar leitores pelo simples fato de ter um livro publicado ou dois. Faltou-me o espírito de Larissa: escrever, escrever, escrever, falar de minha obra, tornar-me obcecado pela função de poeta, contista, sei lá o quê… Mas falta-me o essencial para ser artista. Não é a técnica nem o domínio de uma linguagem simbólica. Falta-me a esperança, a perseverança, a vontade, a insistência. Não importa o quanto eu escreva mal ou bem, ninguém vai me levar a sério porque eu não insisto até quase morrer.

Além disso, eu não pago para que façam propaganda, eu não mando imprimir cem, duzentas cópias e saio distribuindo para as pessoas para ver se a coisa de ser escritor cola. Eu também pouco faço para tentar de maneira mais nobre. Não encho as caixas de e-mail ou as caixas postais físicas de editoras com meus originais. Eu nem sequer ando escrevendo. A única exceção que eu faço é essa coluna aqui, porque o trabalho que esse Instituto faz é muito importante. Talvez por isso eu tenha deixado de lado o ato de escrever: a minha desimportância como pessoa falou muito mais alto do que meu desejo de ser reconhecido por um trabalho do qual ninguém precisa.

Isso só não é cem porcento culpa minha porque infelizmente a circulação da arte também depende de uma economia do simbólico na sociedade da qual eu estou excluído, por causa de minha classe social, principalmente. Eu não detenho um poder “natural” da palavra. Uma pessoa da minha origem, que faz o que eu faço, que tem a minha cor de pele e minha origem étnica pode tudo, menos ter o direito de fazer o que eu faço aqui nesse site, gratuitamente: ter voz e espaço para derramar minhas  letras. Talvez por isso a sina do silenciamento me acompanhe aqui também, não sou o mais lido dentre os meus companheiros e isso me preocupa. Não por mim, mas pelo fato de que não sou, junto com muitos aqui, devidamente ouvido ou pelo menos levado suficientemente a sério. O uso da palavra segue uma ordem. A ordem do discurso mostra uma estrutura de poderes e interdições. Nâo adianta apenas querer, precisamos PODER. O uso da palavra é o principal poder que temos que conquistar, se quisermos subverter  uma ordem que nos oprime.

Mas ainda não desisti completamente. Esse texto é como a minha vida como escritor: um papel amassado na lixeira, um rascunho abandonado. Pegá-lo no descarte, abri-lo novamente e tentar continuar o que está escrito é algo muito difícil, mas necessário. Talvez um dia eu tenha tempo e disposição para tentar ser reconhecido como escritor. Daqui a dezoito anos, eu poderei tentar me aposentar. Por enquanto, sou constrangido a usar todos os recursos mentais e físicos que eu tenho em prol da minha subsistência. E nesse contexto, não consigo ser como Saramago ou ainda como Paulo Coelho. Escrever e ser lido é um privilégio burguês. Principalmente num país em que a opinião dos mais pobres de fato não interessa. Mas continuemos, é uma forma de resistência a um silenciamento que só interessa a quem quer nos dominar.

Imagem da Capa: Patrik Houštecký por Pixabay

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

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