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Crenças

Bíblia antiga

Sempre fui crente, no meu passado. No sentido de acreditar em algo espiritual, numa possível vida após a morte. Isso entra dentro da cabeça da gente ainda na infância. Pais dizem aos seus filhos que eles morrerão e irão ao céu ou inferno, na religião cristã. Embora eu não levasse isso a sério, passou a ser uma preocupação central da minha adolescência: a alma, o pecado, a homossexualidade impossível de varrer para debaixo do tapete. Isso me fez estrear na vida adulta com um grande imbróglio: crer em Cristo que odiava homossexuais.

Eu amava a Igreja, lá tinha um coral para eu cantar. Fora dela, não. Então eu fiquei empurrando com a barriga até o dia em que eu não consegui mais suportar o peso de estar naquele lugar. Sair foi ótimo. Meu interesse novo era pelo misticismo. Meu novo namorado era um misto de místico rosacruz, babalaô, católico carola e orientalista. Ele sabia TUDO o que eu perguntasse sobre misticismo e ele me levou à Ordem Rosacruz, onde eu aprendi a respeitar a astrologia, o tarô e o ocultismo como formas civilizadas e não problemáticas de crença. Assim, saiu da minha cabeça aquela coisa de que isso levaria para o inferno. Não que eu acreditasse em inferno, de fato. Mas havia o ranço deixado pelo cristianismo tradicional, pelas igrejas evangélicas que eu frequentei.

Vivi profundamente o misticismo em seu aspecto prático. Praticávamos Umbanda, íamos à Loja Rosacruz durante os fins de semana (nossa igrejinha), tornei-me martinista. E continuo até hoje crente em parte de tudo aquilo. Mas não creio mais em Deus, rejeito completamente a divindade cristã, mesmo flertando com a Cabala, não me considero um deísta, nunca mais. De fato, sou agnóstico ateísta por definição, mas não milito por essa identidade.

Não atribuo a nenhum fenômeno espiritual a dimensão religiosa das coisas, mas à dimensão sociocultural e materialista dos acontecimentos. E eu gosto de estar no meio de quem crê, porque eu gosto de descobrir como as coisas se resolvem nesse campo. A religião, para mim, é um campo da mente humana, moldada pela cultura. Ela existe pela incapacidade de se descobrir a verdade sobre certos assuntos em certas épocas. A ciência se demorou demais para ter uma opinião empírica sobre a alma, o espírito e outras dimensões imaginárias de nosso ser. Quando finalmente temos um desevendamento de nosso corpo o suficiente para sabermos que se morrer, morreu, ninguém volta, aparece uma carta psicografada, uma visão, um texto antigo sagrado e a dúvida volta às mentes daqueles que querem, que precisam ser aplacados na dor, que precisam ser consolados de uma perda, principalmente daqueles que descobrem que a vida é curta demais e que merece uma possibilidade de continuar.

A ciência não promete nada, além da morte. Vive nos enchendo de esperanças incertas de vida melhor, não barra o envelhecimento de fato, não impede a inevitável, a iniludível morte. Ainda não desenvolveram nada que salve as pessoas de quedas de avião, não existe um modo de salvar quem cai e quebra a cabeça. A vida está no cérebro que funciona, não há nada para se fazer quando ele morre e as outras partes ainda ficam vivas. A religião promete e cumpre sem cumprir todas as promessas mais absurdas já feitas nesse mundo: vida eterna, virgens para violar, possibilidade de entrar em novos corpos, viver novas vidas, esquecendo ou até mesmo lembrando-se de vidas passadas.

Não há nada que de fato possa dizer que o céu exista, ou que a alma exista, do ponto de vista empírico. Não há um “peso da alma”, uma cor em que ela manifeste, nem qualquer fenômeno que possa atestar sua permanência no post-mortem. Mas ela existe, a vida após a morte, os santos, os anjos, as entidades, divindades de quaisquer crenças e culturas. Elas existem porque estão imersas na cultura, são entidades simbólicas que fazem parte de um conhecimento religioso positivo, porque produz poder e verdade, atua sobre as consciências coletivamente e têm resistido firmemente a todo e qualquer avanço da ciência, ou seja, a relgião acaba vencendo, em parte, no seu embate contra a verdade que a ciência apoia.

Não é um jogo de lados: o certo e o errado. É um jogo de cartas meio marcadas. Quem patrocina a ciência hoje, já patrocinou a religião ontem. A religião, embasada em inverdades do ponto de vista científico já sustentou poderes, preconceitos e crueldades. Esse mesmo papel ainda é desempenhado pela ciência produzida, patrocinada pela burguesia. Todo o preconceito racial, que desembocou no nazifascismo do século XX, era justificado por teorias “científicas” sobre a humanidade e a natureza. A ciência hoje, apesar de ter um papel redentor de muitos males do poder, ainda está a serviço do modo de produção e consumo capitalista. E, de fato, qualquer proposta socialista ou socializante de gestão da economia no mundo é fortemente atacada por uma ciência a serviço do capital.

A mesma ciência que anuncia o colapso do clima é a que produz os meios pelos quais ele tem se produzido. No entanto, a religião não é exatamente uma saída para tudo isso. Nem é o conhecimento que deve se unir à ciência para devolver a ela um pensamento sistêmico que possa levar a humanidade a um futuro melhor.

Nessa briga, ninguém ganha, menos ainda quem está à margem dessas disputas entre saberes e poderes. A religião, no entanto, faz algo que o conhecimento científico não faz: apresenta-se como fator agregador de pessoas. A religião dá sentido à vida das pessoas. Quando não está prometendo algo que não pode cumprir, é fonte de regras de sociabilidade, práticas comunitárias intimamente ligadas à identidade das pessoas. A religião é o motivo pelo qual muitos têm esperança e vivem de maneira positiva, mesmo que isso seja por motivos que empiricamente não têm um motivo sequer.

Mas a religião e outros tipos menos institucionalizados de crenças criam a própria realidade metaempírica e logo se torna um motivo para que creiamos nas coisas, assim como cria meios para usarmos na lida com os aspectos práticos da vida: conselhos, horóscopo, cartas de Tarô, búzios, trabalhos, banhos, rezas, orações, jejuns e toda uma série de coisas prescritas para que tenhamos fé que ainda resta em nós uma centelha de poder mágico de fazer as coisas mudarem.

Se há ou não, nem importa mais. Eu tenho certeza que não, mas isso não é um consenso. Certezas só trabalhavam positivamente em consenso. Nesse momento, milhões estão crendo num Cristo que os autoriza a fazer muita coisa ruim em nome dele, e essas coisas ruins estão acontecendo. Esse Cristo existe, mesmo que metaempiricamente.

E assim caminhamos para o matadouro da morte, e quando ela acontecer, será tarde demais acordar para tudo o que estivemos sendo enganados desde muito cedo.

Capa: Imagem de plugrafico por Pixabay.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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