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Cravo e Canela

‘Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim...’: Dorival Caymmi, ‘Tema para Gabriela, cravo e canela’

‘Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim…’

Dorival Caymmi, ‘Tema para Gabriela, cravo e canela’ (ouça no Spotify)

Lembro-me da casa da minha tia, com um quintal bem amplo e uma garagem adaptada para sala de aula onde ela lecionava para postulantes ao ginásio e que dava vistas para um bananal. Eu, aos seis anos de idade, costumava ir para o tal bananal e saltava de bananeira em bananeira com a sunguinha abaixada, na ânsia de ser notado pelos alunos mais velhos. Claro, minha virgindade não iria durar muito tempo e aos oito anos tive a minha primeira experiência sexual, onde fui presente de aniversário de um garoto de quinze anos quando, pela primeira vez, julguei ter encontrado o sentido da vida. A partir de então minha infância e adolescência se tornaram uma época em que tive uma plenitude sexual, pois não havia consequências entre meninos, então era uma festa. Muito além de uma festa, os clubinhos masculinos que eu fundava eram um refúgio que eu tinha para ser o que eu era.

Desde pequeno eu sei que sou gay, ia ao clube com meu pai e, no vestiário, só tinha olhos para os corpos masculinos e seus membros enormes, se comparados ao de uma criança. O problema é que no catecismo eu fiquei sabendo que meu prazer era pecado e que eu iria para o inferno. Também soube que o inferno poderia ser aqui mesmo, pois todas as referências que eu via ou ouvia sobre homens que sentem atração por outros homens eram patéticas e discriminatórias. E o diabo se manifestou várias vezes durante minha vida através de notícias sobre brutais assassinatos de LGBTT (sei que tem mais letras na sigla, mas sempre questionei essa sopa de letrinhas) e também em inflamados discursos de falsos profetas, o último deles da cantora gospel Ana Paula Valadão que, dentre outras asneiras, disse que a AIDS é a prova de que Deus pune a homossexualidade com pragas, bem ao estilo Egito antigo. As falas dessa senhora e de outros da mesma laia não encontram eco nas palavras de Jesus, tanto que não há condenação da homossexualidade no Novo Testamento (exceto por um trecho de Timóteo), mas ainda assim uma grande legião de ‘cristãos’ adota esse discurso como legítimo, mesmo trabalhando aos sábados, usando roupas de tecidos mistos e comendo um bom leitão à pururuca, práticas também condenadas pelo livro de Levíticos, o tal que espinafra o povo do arco íris.

Muita coisa mudou nos últimos dois mil anos. A Terra deixou de ser o centro do Universo, os canhotos de serem amaldiçoados por Deus e a homossexualidade não é mais uma aberração aos olhos da ciência. Atualmente, várias das biociências convergem para que a homossexualidade é um fator pré determinado por nossos genes, hormônios e condições neurológicas, mas uma das grandes características de nosso organismo é a plasticidade em relação ao conjunto de fatores ambientais e culturais, então é justo pensar que nascemos para brilhar, mas as experiências pessoais também devem ter um peso no desenvolvimento e aceitação de tal condição. Não são todos que estão preparados para a dor e a delícia de ser homossexual, mas a Vida acaba por se impor e muitos partem para o estrelado, enquanto outros permanecem trancafiados em seus armários escuros e frios.

Uma coisa é certa: não se trata de opção ser ou não homossexual. Sempre que dou uma palestra eu pergunto se algum dos presentes se lembra do momento que fez sua opção afetiva e sexual… e ninguém se lembra. E olhe que é o tipo de decisão que a gente nunca deveria esquecer, já que irá determinar a forma com que irá se relacionar com a sociedade e, mais complicado, a forma como a sociedade irá se relacionar com a gente. Não sabemos ainda o final dessa história, se um dia identificaremos um gene gay ou os hormônios ‘enterrosterona’ e ‘velcrosterona’ que determinem nossa identidade sexual. O que eu sei é que eu, assim como todos meus amigos homossexuais e lésbicas, não tive opções no que diz respeito à minha forma de amar, a não ser a escolha entre ser ou não ser feliz. Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim e vou ser sempre assim.

E, com a licença de Caymmi, sou feliz assim!

Para ver mais textos de Beto Volpe, confira sua coluna Carga Viral

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2 respostas

  1. Adoro o seu jeito histórico e provocativo de escrever com convicção e segurança sobre aquilo que está expressando!
    E usar a personagem do Caymmi para falar da aceitação da aceitação da sexualidade nos mostra que o mais importante é ser feliz como a linda Gabriela cravo e canela!
    Sou seu fã! Gratidão seu lindo!

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