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Como nossos pais?

Na semana passada, os parlamentos de dois estados mexicanos aprovaram o casamento igualitário (como no Brasil, o México é um Estado federativo mas, como nos Estados Unidos, os estados da federação têm muito mais autonomia legislativa e administrativa do que no Brasil). Agora, 24 dos 32 estados mexicanos têm o casamento igualitário incorporado às suas legislações. Essa tendência ganhou impulso nos últimos anos, desde que, em 2015, a Suprema Corte de Justiça da Nação (o STF mexicano) declarou serem inconstitucionais os códigos civis estaduais que proíbem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Notícias como essa alegram-me, naturalmente. São avanços lentos, é verdade, mas são avanços na direção certa.

Curiosamente, venho pensando bastante nessa questão do casamento igualitário e no seu significado material e simbólico desde que li, faz uns dois meses, um livro muito interessante: “Queer Theory: An Introduction”, de Annamarie Jagose. O livro foi escrito e publicado na metade da década de 1990, quando a chamada teoria queer tinha recém se afirmado como uma corrente forte na área de estudos LGBTQI+, especialmente no mundo acadêmico norte-americano. Por isso, não dá conta de muitas contribuições importantes da teoria queer, que são posteriores a esta época. 

Mas o grande mérito do livro é o de inserir a teoria queer em seu contexto histórico e situá-la em relação tanto às perspectivas teóricas quanto à militância política no campo dos direitos das pessoas LGBTQI+ que a antecederam.

Ao fazer isso, a autora identifica duas tendências opostas que tensionam esse campo ao longo do século 20 ou desde que, para acompanhar a hipótese formulada por Foucault, a homossexualidade foi isolada e singularizada como um objeto de saber e as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo tornaram-se alvo dos dispositivos de poder. 

De um lado, teremos aqueles que verão a homossexualidade como uma manifestação da diversidade e que defenderão a integração dos homossexuais à sociedade. Do outro, há aqueles que consideram que a homossexualidade é essencialmente transgressiva por colocar em xeque a ordem patriarcal heteronormativa, e que a emancipação das pessoas LGBTQI+ só é verdadeiramente possível se vier acompanhada de uma transformação profunda da própria sociedade.

A teoria queer, ou pelo menos a parte dela que me parece mais instigante, irá de certa forma redimensionar essa tensão ao questionar a ideia de identidade, seja ela baseada na orientação sexual ou no gênero. Mas essa é uma outra discussão, que não pretendo desenvolver agora. O que me interessa hoje é refletir sobre essa oscilação entre o desejo de integração e o impulso de transgressão e ruptura.

E é aí que entra a questão do casamento igualitário. O direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é um passo importante no sentido de uma normalização e de uma integração das pessoas LGBTQI+ na sociedade. Mas é também um reforço de uma ordem social que exclui todos aqueles que não se conformam aos padrões e modelos que são, em sua origem, basicamente heteronormativos. 

Há muitos anos, quando o casamento igualitário começava a se tornar uma possibilidade concreta, fui ao lançamento de um livro de uma advogada norte-americana que defendia a ideia de que a discussão sobre o assunto não deveria limitar-se ao direito ao casamento, e sim ser ampliada no sentido de incluir outras possibilidades de formalização jurídica de arranjos afetivos fora do casal tradicional (o nome do livro é “Beyond Straight and Gay Marriage – Valuing All Families Under the Law”, e a autora Nancy D. Polikoff). 

Infelizmente, essa ideia não vingou. A legítima reivindicação de garantir aos casais do mesmo sexo os mesmos direitos já concedidos aos casais heterossexuais acabou prevalecendo e eliminando a possibilidade de formalização legal de outros arranjos, já existentes ou ainda por inventar.

Isso não impede que a conquista do casamento igualitário seja um avanço importante e necessário. Mas também não deveria ser considerado suficiente, nem enquanto bandeira de luta quanto como vitória concreta. Em outras palavras, acredito que a conquista do direito ao casamento deve ser vista como um passo no sentido do reconhecimento da legitimidade da diferença e da diversidade, mas não como a reafirmação de um modelo que teria supostamente valor universal para todos, independentemente de sua orientação sexual. 

De certa forma, a reação conservadora à ideia do casamento igualitário, ao manifestar o temor de que a extensão do direito ao casamento às pessoas do mesmo sexo seja uma ameaça à ordem social, não está de todo equivocada. Pois no fundo o que está (ou deveria estar) em questão não é tanto o casamento em si, mas sim a ideia de que o casamento é a única possibilidade de arranjo jurídico e institucional digno de reconhecimento e, mais do que isso, de que ele deve ser a referência central em relação à qual todas as outras possibilidades de arranjo afetivo devem se situar. Assim como a heteronormatividade patriarcal quer se impor como o único modelo possível de relações afetivas e sexuais. E nós, que pertencemos aos grupos cujos desejos e aspirações fogem a essa norma, sabemos o quanto é difícil escapar do peso dessa estrutura milenar, até (e talvez principalmente) dentro de nós mesmos.

Dito isso, sou bastante cético em relação ao imperativo da transgressão e da ruptura defendido por alguns teóricos e militantes da causa LGBTQI+. Não acredito muito na ideia de revolução. Reconheço a importância e a necessidade de momentos de corte e descontinuidade, mas levo mais fé no que o filósofo francês François Jullien chama de transformações silenciosas, processos históricos de longa duração dos quais as rupturas seriam mais um resultado e um marcador simbólico do que uma causa. 

Por isso, creio que rejeitar a luta pelo casamento igualitário, por exemplo, porque ela não vai longe o suficiente na construção de uma ordem social mais justa e igualitária é um erro estratégico. Mais do que isso, pode ser uma forma de querer substituir um tipo de normatividade opressiva por outra. “Você NÃO pode desejar isso” parece-me ser um enunciado tão autoritário quanto “você SÓ pode desejar isso”. Ou, como diz o intelectual francês Didier Éribon, 

“Não cabe a nenhum de nós dizer o que é desejável ou não para os outros. Cabe a nós todos fazer com que aquilo que é desejável, para uns e para outros, se torne possível, acessível. Trata-se então de trabalhar para apagar as fronteiras que proíbem aos indivíduos o acesso ao que eles querem ser, ao que eles querem viver, e que continuam a exclui-los, não somente do que existe, como no caso de Barthes e do casamento, mas do que ainda não existe, e que aparece ou aparecerá um dia, sem que possamos antecipá-lo, possível de criar.”

No fundo, o que está em jogo é uma permanente ampliação do campo do possível que, mais do que romper barreiras ou superar limites (imagens que me parecem pertencer à mitologia do “herói”, o “macho adulto branco sempre no comando”), vai ampliando esses limites até que todo o campo seja transformado e a ruptura aconteça “naturalmente”, como na hora do parto. 

Afinal, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais? Sim e não. E não há nada de errado em viver mergulhado no paradoxo, entre os caquinhos do velho mundo e a gestação de um mundo novo. Alguma coisa sempre esteve e sempre estará fora da ordem. Felizmente.

Até a próxima!

PS –  As músicas que pontuam a coluna de hoje são clássicos sempre atuais: “Como Nossos Pais”, de Belchior, na voz de Elis Regina; “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso; e “Pra Começar”, com a Marina Lima.

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