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Bacon, ovos e escatologia.

Intertextualidade: o significado de um texto é formado pelo significado de outro. Entendendo-se por texto qualquer ato de enunciação, qualquer uso de linguagem que possa transmitir ideias e conceitos construidos socioculturalmente, uma pintura pode ser vista como um texto, assim como uma fotografia. Na imagem a seguir, temos um detalhe da pintura do artista surrealista Salvador Dalí, “Autorretrato mole com bacon frito”, de 1941. A imagem à direita é um detalhe de um fotograma do filme “Pink Flamingos”, de John Waters (1972), que aparece exatamente aos 76 minutos e 17 segundos da obra, estrelada por Divine *Harris Glenn Milstead”, drag queen e atriz, vivendo a personagem Divine/Babs Johnson, “a pessoa mais obscena do mundo”.

Montagem do autor, a partir das imagens citadas no texto.

No momento em que uma dupla de vilões destrói a casa de Babs, num incêndio, a imagem mostra em close um pedaço de algo cor-de-rosa no chão, como se fosse um pedaço de pano, uma peça íntima, ou mesmo pele humana, assim como no retrato de Dalí. Não sabemos. As imagens se parecem. Ao fundo, o resto da casa de Babs, um trailer em chamas, parece defumar um pedaço de carne humana ainda com pele, ao mesmo tempo em que pensamos que pode ser sim um pedaço de roupa. Essa ambiguidade remete à obra de Dalí. A ideia de que pode ser matéria orgânica é reforçada pelo acontecimento anterior: a festa de aniversário de Babs Johnson havia sido denunciada à polícia por seus inimigos. Os policiais que atenderam à ocorrência foram combatidos, destroçados e comidos por Babs e seus amigos, numa orgia canibal.

Imagem de notícia fictícia, pertencente ao filme “Pink Flamingos”, na qual Divine/Babs Johnson está para executar seus inimigos, que destruíram sua casa num incêndio. Disponível em https://movieposters.ha.com Reprodução de anúncio na Internet. Clique na imagem para visualizar em seu local original.

 

Na intertextualidade, as obras se comunicam. O filme e a pintura pertecem ao universo do absurdo, do impossível, do insólito. Dalí e Waters chocam o século XX com imagens inusitadas. No entanto, o filme estrelado por Divine abusa também de violência gráfica, agressividade, cenas violentas, como canibalismo e coprofilia. Waters produz contracultura: opõe-se de maneira radical, chocante a toda normalidade. Esse é o sentido do surrealismo da pintura de Dalí, também, embora não opte por imagens agressivas, cruas, nem por cenas violentas.

Por outro lado, a pintura original de Dalí é violentíssima, em seu ato onírico, absurdo e insólito de desconstrução do ego:

Autorretrato mole com bacon frito, de Salvador Dalí, de 1941. Reprodução de publicidade. Veja a obra em seu lugar original clicando no link, junto a ela.

Na imagem, o pintor caricatura a si mesmo. Ele só é reconhecível por seus bigodes icônicos e porque há a escrita “soft self portrait”. A figura é uma espécie de máscara deformada, como se fosse de borracha amolecida ou queijo fundido. Hastes sustentam a sua imagem mole. Elas se parecem com espetos, garfos de fondue ou mesmo lembram as “misericórdias”, hastes metálicas com que se escoravam andores carregados por homens ou mulheres em procissões ibéricas. O bacon à esquerda de quem vê, sobre a base lembra a tradição da charcutaria ibérica, famosa no mundo inteiro, mas também remetem ao breakfast inglês e estadunidense, trazendo o cotidiano para dentro da obra. Assim como em Pink Flamingos, o ser humano é retratado num cenário de banalidades e superficialidades e, em determinado momento, viram comida dos mais fortes.

Já em Pink Flamingos, a mensagem é mais contundente: o ser humano dá sua carne como pasto para os agressores. Símbolo das múltiplas violências que a sociedade esconde, oculta por detrás de paredes bonitas ou da lataria de um trailer que serve de casa para uma família de sociopatas, nós, espectadores, somos simbolizados pelas mulheres aprisionadas pelo casal Marble, ou pela galinha sodomizada pelo filho de Babs ou ainda pelos policiais canibalizados. Talvez alguns de nós sejamos as fezes de cachorro que Babs ingere nas cenas finais.

O filme tem uma narrativa simplificada, cenas sem propósito narrativo e uma abordagem absurda e chocante, com foco no horror que certas cenas trarão. Não retrata com fidelidade as perversões que tenta mostrar, até porque não quer o lugar de tantas outras obras de caráter documental sobre criminalidade. Waters quer chocar pelo absurdo, mas ao mesmo criticar padrões. Para mim, o autor inova ao mostrar Divine, a drag queen, num papel em que ela era para ser uma heroína, mas é a pior de todas as vilãs, não se vitimiza ante um mundo cruel e excludente, ao contrário, ela submete a todos ao seu poder sem nenhum tipo de remorso, por ser uma sociopata, cometedora de tantos outros crimes infames. Isso destoa um pouco da imagem de personagem LGBTQIA+ vítima, criminoso ou criminosa por ser vítima, vítima de preconceito, vítima de exclusão. O mundo ao redor que é vítima de Babs/Divine.

Mas, enfim, talvez o que mais pese para o espectador seja a ideia de o horror do comportamento humano uma hora se mostre a nós todos de maneira crua e imbecil. Esse é o papel dessa obra. Sem moralismos ou medo de mostrar coisas grotescas. A exemplo, Edie, a mãe de Babs, uma compulsiva comendo ovos o dia inteiro, sendo humilhada com ovos sendo atirada por todo o seu corpo ou se entregando aos seus desejos de maneira insana,  casando-se com um vendedor de ovos. Somos todos Edie. Ou seremos os ovos que ela come? Ou ainda, seremos o bacon frito da pintura de Dalí? Ou as fezes que Babs come? Não saberemos jamais.

Assista a uma crítica em vídeo:

 

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

 

Capa: Poster do filme, em publicidade de site de vendas para colecionadores. Acesse clicando aqui.

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