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Ateu, sim, graças a Deus

Esses dias me peguei jogando Tarô com um amigo, coisa que eu não fazia há séculos. Me senti o mais sem-vergonha de todos os ateus. De fato, não foi a atitude mais coerente do mundo, mas quem disse que coerência é tudo. A verdade é que havia anos que eu estava de mal do mundo espiritual, pelo menos uns quatro. O que me fez me assumir como ateu. Seriamente falando, há pelo menos uma década que eu desisti de acreditar em Deus, de fato, e me enveredei num profundo agnosticismo teísta ou deísta, como queiram, para mim deus ou deuses poderiam existir, mas longe da minha possibilidade de conhecê-los.

Isso permitiu criar uma crença mística, em forma de colcha de retalhos, que reproduzia uma tendência, consciente da minha parte, de compor a minha própria fé. Eu não me sentia obrigado a acreditar numa religião institucionalizada e nem nos seus axiomas que me prescreviam um tipo específico de divindade que não me agradava tanto, mas ao mesmo tempo, eu mantinha um vínculo com uma ideia mais ou menos confortável da existência de um mundo superior, uma espiritualidade independente ou não da permanência da alma. Isso eu consegui afundando-me no misticismo. Não quero ser bonzinho com ninguém. Os meios místico-esotéricos que eu frequentei são cheios de religiosos, de gente que havia se esgotado em suas religiões de origem e que buscava um “algo mais”. Dentre as pessoas que eu conhecia, esse “algo a mais” era sempre procurado em ordens iniciáticas místicas, na Umbanda ou no Candomblé.

Uma coisa interessante é o quanto o Candomblé gozava de um prestígio dentre certas pessoas, como um lugar de pureza espiritual profunda, ainda que fosse difícil perceber isso, de fato, em seus praticantes, seres humanos comuns, todos gente como a gente. Não quero julgar nada, apenas mostrar que havia uma tendência. Eu nunca quis participar do Candomblé, mas a Umbanda me chamou a atenção desde o primeiro momento. Primeiro por postular a existência de espíritos, entidades espirituais com personalidade-alma, que sobreviviam à morte e existiam numa dimensão diferente, almejando voltar ou continuar por lá, sempre objetivando evoluir. Isso, eu sabia, era influência do Kardecismo. E havia a influência do cristianismo católico que eu conhecia bem, santos, anjos, rezas, pretos-velhos falando pela boca de seus médiuns Ave-Marias, Credos, benzeções, uma fé muito popular. Os pretos-velhos me lembravam meu avô, no seu jeito manso de falar, nas suas rezas e no cheiro de fumo de rolo. A Umbanda era um lugar onde eu não tinha medo de ser pobre, se precisar de ajuda, as pessoas junto de mim na tenda eram todos necessitados, pobres ou ricos. Não precisava ter medo de quem tivesse mais dinheiro. A Umbanda me proporcionava algo que era proporcionado a todos: um tratamento muito pessoal.

Mas aconteceram coisas. Minha relação com qualquer forma de misticismo ou crença passava pelo meu fracassado casamento. Eu era umbandista, místico rosacruciano, martinista, tudo através de meu marido, que me houvera introduzido nessas crenças, nas quais eu entrara exatamente por ter alguém que as praticasse comigo. Nesse ponto eu não poderia contar com família ou amigos próximos. Éramos os dois. Ele, com fé transbordante. Eu, apenas um agnóstico, duvidante, cada vez mais dentro dessas práticas, mas cada vez mais fora da crença que as mantinha perto de mim. Meu ex-marido era, sei lá da vida dele agora, médium. Havia um espiritual palpável ao seu redor. Principalmente por suas crenças muito arraigadas. Havia as supostas comunicações com o além, sua mediunidade quase incontrolável. Muitas vezes, as entidades que ele incorporava na tenda apareciam em casa e eu conversava com elas. Demonstrava uma fé convincente, mas ficava ali a olhar naqueles olhos meio indistintos do corpo dele incorporando-se outra personalidade, procurando evidências de qualquer tipo de atuação.

Percebi que o poder de todas as entidades que ele manifestava, dentro ou fora do ambiente religioso, não imaginavam sequer o que se passava na minha cabeça e eram incapazes de fazer uma leitura de mim que qualquer psicólogo ou mesmo qualquer pessoa atenta pudesse fazer. Poucas vezes fui realmente sincero na frente dessas entidades, porque elas carregavam em si o corpo da pessoa de quem eu desconfiava. Acho que a mediunidade de meu ex-marido salvou nosso casamento muitas vezes, porque eu desisti várias vezes de deixá-lo depois de conversar com essas entidades. Depois de testá-las. O perdão que ele não tinha coragem de me pedir cara a cara, eles pediam indiretamente por meio de suas explicações e promessas. As entidades me davam passes para eu melhorar de uma gastrite crônica da qual eu jamais melhorava, gostavam de diagnosticar meus rins, ensinar chás para a minha artrite, ouvia conselhos e via algumas cenas próprias do meio. Mas a crença só diminuía. Sinceramente, a minha fé esbarrava na possibilidade de aquilo tudo ser uma espécie de estado psicótico de meu ex-marido, que acreditava, de fato estar incorporado. Ele poderia também ter transtorno dissociativo de identidade, um tipo específico ligado a crenças espirituais específicas. Assim como tudo também, como pensaria um agnóstico, pode acontecer por razões ainda não explicadas. Nessa época além de místico, médium e de toda uma série de qualidades, meu marido era alcoólatra e se afundava cada vez mais nesse vício pernicioso a ele. Um dia, depois de uma série de eventos dramáticos, ele resolveu se tratar e parar de beber. A mediunidade se foi junto com ele. Restou o ser humano com seus defeitos e problemas, agora sem o Véu de Ísis da espiritualidade e nem o Véu de Baco da bebida. Essa pessoa conseguiu me forçar a sair da relação.

E dela saí sem muitas crenças que eu tinha antes. Quando saí de casa, num esforço de me livrar de muitos problemas, trouxe meu Tarô e o deixei fechado, tendo aberto as cartas para minha irmã um par de vezes em quase três anos. Ainda procurei a Umbanda, em Goiânia e aqui, em Goianésia, sinceramente, detestei o que eu vi, as experiências que tive. Não quis ser rude e criticar ninguém, nem os donos das casas em que participei, mas senti-me enganado. Desde que eu praticava Umbanda com meu marido, já que ele era médium e eu o servia como cambono, muitas vezes, eu sentia um peso desconfortável sobre mim. Não dele ou das obrigações em si, mas da obediência que a Umbanda requeria de mim. Da disciplina que ela impunha, do tom chantageador, constrangedor com que coisas eram ditas. Não gostava também das determinações. Do nada alguma coisa tocava diretamente seu corpo, você tinha que obedecer, isso não vai dar certo, a culpa é sua. De fato, tudo isso é muito comum em qualquer religião, mas a Umbanda não deveria ser qualquer religião. Não deveria?

Era o que eu achava, eu pensei que estava mergulhado numa água limpa e pura de liberdade e espiritualidade, mas eu via sobre mim crescer o poder que dominava meu corpo, que me prescrevia uma obrigação, que me incomodava com meus pecados, que jogava o jogo das vidas passadas e vindouras para que eu me amedrontasse, para que eu fosse fiel. Eu me lembro o dia em que Jesus Cristo morreu para mim, indo para o Calvário, na Procissão dos Passos, quando eu percebi que nada adiantaria, que nenhum deus ou filho dele mudaria a minha vida, me deixaria feliz, curaria meu marido, primeiro do alcoolismo, depois de seus sérios desvios de caráter, de sua tendência à violência. Nenhum santo ou anjo, ou entidade o traria de volta para mim, o tempo havia passado. Nós não éramos mais as mesmas pessoas, nenhum milagre traz vivos ou mortos de volta, não importa se isso esteja escrito nas páginas de algum livro sagrado. Doeu perceber isso. Meu deus havia morrido de inanição mesmo, de tanto eu não precisar dele. Os espíritos e entidades morreram um a um na minha frente, reduzidos a uma espécie de comportamento neurótico meu e de meu marido. O teatro havia acabado porque havia perdido o sentido. Jesus, esse morreu depois, quando eu percebi que ele não iria fazer algo por mim, não porque eu não merecesse, o que de fato era verdade. Mas porque ele não mudaria coisas que não se mudam. No fundo, milagres como curas, retorno à vida ou a multiplicação de pães e peixes são mais fáceis do que mudar uma pessoa por dentro, do que esperar que um caráter se regenere ou que uma pessoa desenvolva por outra respeito e amor, se isso se perdeu ou nunca existiu.

Meu desligamento da religião foi cruel, brutal, passou por eventos muito dolorosos, como quando fui rejeitado pelo pastor da minha igreja, após ter confessado que era gay. Depois, ao perceber que tudo o que eu e meu marido estudávamos juntos no misticismo não adiantava nada. Não promoveu minha liberdade como pessoa, não o ensinou a me respeitar, não nos ajudou a consertar erros e problemas, ao contrário. Nossas crenças se intrometiam de modo pérfido nas nossas diferenças. Depois houve mais dois eventos, no mínimo decepcionantes. Eu resolvi ir a uma casa de Umbanda antiga, em Goiânia. Participei do trabalho e ao ser chamado para a consulta com a entidade, ela quis primeiro que eu confessasse algo que eu não sabia o que era. Me pôs para ler um trecho do Evangelho Segundo o Espiritismo e me perguntou o que eu tinha entendido. De fato, aquilo já me constrangera. O trecho estava meio fora do contexto, mas claro, havia algo ali que serviria como uma espécie de lição, era um texto injuntivo. Parecia cristão praticando bibliomancia, quem já viveu sabe, eu não gostei, mas muito respeitosamente, continuei e a tal entidade insistiu em dizer que eu estava muito triste, precisava melhorar. Foi com muita dificuldade que eu falei parte de meus problemas. Eu não conhecia aquele lugar, temia, inclusive em dizer coisas da minha vida e sofrer preconceito. Mas falei, ufa! A entidade disse que eu ficaria melhor, era para eu ir para casa e melhorar minha aparência, cortar minha barba, raspar tudo que eu ficaria melhor, atrairia coisas melhores para mim. Puxa, minha barba, não. Eu amo minha barba. Mas não disse isso a ela, apenas fitei a cara da médium, depois a do cambono e fiquei calado. Terminou a consulta eu fui e nunca mais voltei.

Tive experiência semelhante aqui, na minha cidade. A entidade, por sua vez, me mandou parar de falar as coisas que eu dizia, que eu estava sendo muito negativo, falando demais, falando de coisas que era melhor eu não dizer, que eu precisava ficar mais calado, e foi repetindo essa sequência de verbos. Eu olhei na cara da pessoa e mais uma vez me silenciei. Não que eu achasse que deveria ficar calado, de fato. Eu me calei por aquilo ali. Eu conhecia o dono da casa, não conhecia aquele médium, mas o dono da casa, sua esposa ali, pessoas que eu respeito tanto. Preferi me calar. Não era hora de discutir. Mas hoje não é mais aquele dia. Portanto estou aqui falando.

Odiei, no ano anterior, ter passado por aquela experiência negativa, de ter sido, de fato, feito de idiota. Eu tinha que cortar a minha barba para ter uma melhor aparência para atrair coisas boas. Isso é higienismo. Minha barba que eu escovava e untava todo dia, minha barba da qual eu tanto gostava. Minha opção em ter uma imagem melhor de mim mesmo não merecia aquele esculacho, e que ideia é esse de beleza ligada a uma imagem de homem escanhoado, alinhado, isso é muito burguês. Não parece ser algo saído da boca de uma entidade secular, como um preto velho angolano. Aquilo era, de fato, na minha cabeça, um teatro, uma simulação, a oferta de um serviço religioso muito mais ou menos. Assim como a fala da entidade na outra casa, mandando eu calar a boca. Enquanto isso eu olhava na cara do médium e o reconhecia do Grindr, onde havíamos trocado algumas palavras de paquera que não deu certo. E depois eu o havia adicionado no Facebook, e ali ele pode ter lido minhas postagens, opiniões e dado à sua entidade uma ideia do que dizer para me impressionar.

Infelizmente, muitas práticas religiosas, independente do credo, querem se apossar de nossos corpos, mentes, bocas, para nos controlarem, e com isso, conseguir a nossa adesão. Podem ser conselhos como os que eu ouvi, mas podem também ser chantagem espiritual, amedrontamento, promessa de livramento de problemas conscientes ou não. Só que eu sou muito arisco. Não faço amizade fácil, não fico fácil em lugares onde sou bem tratado, imagina em lugares como esses, em que fui tratado como um idiota. Corta sua barba, cala a sua boca! Não é necessário que ninguém morto surja por meio de um médium para dar esses conselhos de almanaque, de horóscopo. Gente viva faz isso o tempo todo. Ouço isso de parentes, colegas de trabalho, até de gente desconhecida no transporte coletivo.

De fato, eu abandonei crenças e relações com pessoas religiosas, prefiro outras perto de mim, não é preconceito, se você é religioso, não se ofenda. Não te ofenderei também, essas são as minhas vivências, as suas só importam a você. Mas o espiritual ainda me interessa, não que eu creia nisso, mas porque eu ainda gosto dos fenômenos que envolvem a espiritualidade dentro do contexto histórico e socioeconômico em que vivemos. Eu tenho interesse científico, acadêmico, até pela religião, religiosidade, espiritualidade, fenômenos, dentre outros. Minha vontade é, entre outras coisas, um dia, dedicar-me a pesquisar profundamente certos assuntos.

Só que, mais uma vez, um papo muito interessante sobre espiritualidade com um amigo me trouxe de volta ao Tarô. Não me senti traidor de mim mesmo, eu conheço o Tarô muito bem para compreender como ele funciona. É um sistema simbólico antigo, ligado às raízes da cultura europeia que colonizou a nós, americanos. É uma chave de acesso ao inconsciente e eu não acredito em predições do futuro, mas acredito nas possibilidades hermenêuticas que ele oferece, ao supostamente “responder” nossas perguntas. A associação entre as cartas e possíveis significados ajuda compreender as coisas, bem mais do que apontar para o futuro delas, como por mágica. E compreender é, sim, abrir portas para possibilidades futuras. Mesmo que ele seja usado como oráculo. Muitas coisas são usadas como oráculo, por exemplo, a Bíblia. Eu não creio em cartomantes, embora eu tenha estudado para ser um, eu não creio em previsões por meio de figuras, símbolos, letras, conchas, mas eu creio no poder da linguagem, na capacidade de resultado positivo quando aquelas figuras nos fazem falar. E creio que, quando leio, ao contrário de uma sessão de psicanálise em que o indivíduo é que fala, quando leio o Tarô, quem ouve associa aquilo a coisas na sua mente e as interpreta. Não é necessário crer em nada, nesse processo, nem em deuses ou em espíritos. O Tarô é um livro, crer nele é irrelevante para que ele exista ou para que se entenda o que está escrito. Minha relação com o Tarô não é a relação que eu tenho com algo religioso, não é de fé, mas de razão, de compreender sua hermenêutica. Assim como eu compreendo outras formas de interpretação das coisas que também foram desmentidas pela ciência. Assim como eu acredito em coisas que a ciência não avaliza.

Ser ateu não me tornou uma pessoa sem, fé, mesmo que seja sem deus ou deuses quaisquer. Não sou mais o agnóstico que lidava com a constante e corrente impossibilidade de se explicar tudo. Para mim tudo se explica. A ausência do sagrado por si, a ausência de deuses, santos, anjos e espíritos e a presença o do inconsciente coletivo que permite a produção social e individual das religiões, que aciona a simbologia das crenças, a mesma simbologia que eu aprendi por meio do Tarô, mesmo que a ciência não o alcance. Há uma racionalidade nisso tudo, há uma pessoa que pensa, outras que pensam juntas, há consciências e inconsciências

Há eu. Muito prazer. Não creio no que você acredita, mas creio no fato de que acredite e possa, com isso, construir sua vida por meio de significados e valores. E creio que há possibilidade de todos viverem em harmonia e ética.

Para ver mais textos de Alex Mendes,
acesse sua coluna O Poder Que Queremos

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