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Aqui e agora

Eis-me aqui de volta. Mais de quatro meses depois da minha última coluna, volto a ocupar este espaço do qual senti muita falta. Não planejava ficar tanto tempo longe, mas as coisas acabaram acontecendo de um jeito que ficou difícil arranjar tempo e espaço para sentar e escrever com calma. Acabei percebendo que a coluna de 20 de janeiro meio que tinha encerrado uma temporada, e agora começo uma outra.

Como alguns de vocês talvez se lembrem, no final daquela temporada eu estava iniciando um processo de mudança de país, de Portugal para o México. Esta nova temporada inicia-se comigo instalado na minha nova morada, na Cidade do México. Já estou exercendo minhas novas funções no Consulado-Geral do Brasil no México, tomei a primeira dose da vacina contra o Covid-19 (VIVA A SAÚDE PÚBLICA!) e começo lentamente a me sentir em casa novamente. Hoje de manhã, saí para passear com o Cacau, nosso cachorro, e uma senhora que costuma passear com sua pastora alemã, a Rita, mais ou menos no mesmo horário que eu, me viu de longe e acenou para mim. Naquele momento percebi que, de alguma forma, já faço parte da paisagem do bairro. Foi bom.

Em dezembro, ao falar da mudança que estava prestes a começar, escrevi que tinha a sensação de que estava entrando numa zona de turbulência. E, de fato, o processo da mudança teve seus momentos turbulentos. Entretanto, ao longo dos últimos meses, o que predominou mesmo foi uma outra sensação: a de estar numa espécie de limbo, aquele lugar intermediário no qual o que existia já não existe mais, mas o que está por vir ainda não começou a acontecer realmente. Assim como a turbulência, é uma sensação desconfortável. No caso da nossa mudança, o fato de estarmos no meio de uma pandemia agravou esse sentimento. Tudo levou mais tempo do que o normal, e nossa chegada ao México não teve o mesmo sabor de descoberta de um novo lugar que vivemos em experiências anteriores. Devido à pandemia, ainda conhecemos pouco da cidade onde agora moramos além dos limites do nosso bairro e do bairro vizinho, onde trabalho. Só recentemente, já semi-vacinados, começamos a ampliar nossos limites, muito devagar.

Assim que chegamos ao México, no fim de janeiro, li no Facebook um texto curto do Gilberto Gil, no qual ele fala sobre a necessidade de estarmos íntegros no aqui e no agora. Uma música antiga do Gil chama-se justamente “Aqui e Agora” e afirma: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora” (veja o link no final da coluna). O texto dele relembra essa canção e sugere que, mesmo em meio a todas as dificuldades e privações que estamos vivendo, o que temos é o aqui e o agora, e precisamos estar presentes neles.

Essa ideia tem-me perseguido e incomodado desde que li o texto do Gil. Fez-me lembrar uma novela satírica do filósofo francês Voltaire, do século 18, chamada “Cândido ou o otimismo”, na qual ele critica a noção proposta por outro filósofo, o alemão Leibniz, de que nós vivemos no melhor dos mundos possíveis. Cândido, o protagonista do livro, testemunha e vive uma infinidade de desgraças e tragédias, entre elas o terremoto que destruiu Lisboa em 1755, e ao longo de toda essa tumultuada trajetória seu mentor, o Professor Pangloss, insiste em repetir a ideia de Leibniz. No final da narrativa, instalado em sua pequena propriedade na Turquia, Cândido continua ouvindo Pangloss afirmar que vivemos no melhor dos mundos possíveis, mas agora retruca: “Sim, mas é preciso cultivar nosso jardim”.

Para além das minhas circunstâncias pessoais que, apesar de incômodas, são bastante insignificantes quando vistas em perspectiva, essa conversa de melhor dos mundos fez-me pensar em como é possível manter, não exatamente o otimismo, mas pelo menos uma certa alegria e serenidade em tempos tão sombrios quanto o que estamos vivendo. Mais do que isso, talvez o ponto não seja saber se é possível manter a alegria e a serenidade, e sim pensar se é legítimo cultivar a alegria e a serenidade no meio de tanta dor e de tanta desgraça. Em algum momento, percebi que parte da minha dificuldade em escrever nos últimos meses vinha justamente deste questionamento. Como e porque falar em “bons momentos e quem sabe algo mais” quando estamos sendo bombardeados constantemente por todo tipo de notícias ruins e desanimadoras?

No seu texto, o Gil diz que o aqui e agora a que ele se refere não é necessariamente um lugar geográfico. Seria mais um lugar interior, ancorado no momento presente, mas que de certa forma o transcende. Ou melhor, transmuta-o. Transcender traz sempre uma ideia de um outro lugar idealizado. E não é disso que se trata. Estar presente no aqui e agora não seria remeter a possibilidade de alegria e serenidade para uma outra dimensão, e sim encontrar no próprio presente essa possibilidade. Mais do encontrar, criar no presente, a cada instante, essa possibilidade.

Talvez isso se aproxime do que o filósofo francês Michel Foucault descreve quando estuda o que ele chama de “práticas de si” nas filosofias helênicas. Essas práticas, que certamente fascinaram Foucault, podem ser relevantes para nós hoje não por oferecer fórmulas e receitas fáceis de felicidade, como insiste em sugerir a indústria da auto-ajuda que continua o discurso do Professor Pangloss nos nossos dias, mas por encarnarem uma atitude diante do mundo que, sem recusar o presente, também não se resigna a ele. Estabelece com o presente uma relação ao mesmo tempo criativa e reflexiva.

“Gerir a existência nesse mundo é uma coisa complicada”, diz o Gil. Acolher o aqui e o agora não significa necessariamente ignorar essa complicação, seja alienando-se numa realidade paralela, seja apostando num imediatismo e numa busca de gratificação instantânea, sempre frustrante porque insustentável. Pode ser, ao contrário, assumir essa complicação como ponto de partida e perceber o presente ao mesmo tempo como o que é, mas também como campo de possibilidades imanentes. Aprender a reconhecer e explorar essas possibilidades. Perceber o presente como o lugar onde se encontram, aqui e agora, tudo o que já foi e tudo o que pode vir a ser.

Nesse sentido, respondendo à minha própria pergunta, creio ser legítimo cultivar a alegria e a serenidade nesses tempos difíceis e desafiadores. O que não significa dizer que está tudo bem quando não está, nem negar a dor, a raiva ou a indignação. Significa afirmar a vida diante dos que promovem a morte ou, como diz outro professor, Luiz Antonio Simas, promovem o fim da vida e da vitalidade. É dizer, como os Titãs: “O pulso ainda pulsa. O corpo ainda é pouco.”

São 19:13 de domingo, dia 6 de junho de 2021. Da varanda da minha nova casa, vejo as árvores do parque em frente e o relógio da torre a me lembrar: o lugar é aqui, o tempo é agora. Bom ou ruim, é o que tem pra hoje. O que não deixa de ser um motivo de celebração.

Até a próxima!

PS – Na mini-playlist de hoje tem, é claro, “Aqui e Agora”, com o Gilberto Gil. Tem a maravilhosa Marina Lima, com “Meu Tempo”, música dela com o Antônio Cícero. E tem um clip novo de um dos meus grupos favoritos da atualidade, Fangoria: “Momentismo Absoluto”. Divirtam-se!

4 respostas

  1. Meu amigo Paulo, que boas palavras, ventos e flores mexicanas que você nos traz, neste texto. Você sabe, Esu é o Senhor das Encruzilhadas, onde cada canto aponta para um caminho, que cabe a vc decidir. Ele somente lhe consagra o lugar para sua decisão, pois, como te falei em dezembro. Do caos, nasce tudo, inclusive a liberdade de ser e estar onde você merece estar com seus amores (marido e o seu Uauáu). E Esu e Osagiyan são os senhores da palavra,por isso sua filosofia é presente entre nós.

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