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Ao fechar das cortinas

cortina

Ato único

Lembrei-me da minha apresentação. O texto estava todinho na minha cabeça, devidamente decorado, cada nuance da interpretação, cada girada corporal e movimento de cabeça, tudo devidamente ensaiado.

A cortina se abriu. A primeira fala era a minha:

– Oh, meu Deus, o que vejo? Fome? Meus filhos, pequenos garotos, como estão essa manhã? Papai jura que a fada trará pão para nós!

Estavam eu e mais três atores em cena. Um deles demorou alguns segundos para responder, fiquei um pouco tenso. A fala dele era:

– Pai, pare com essas histórias, a fada do pão não gosta de nós! Sempre vejo visitando um monte de famílias e nunca visita a nossa.

Fazendo movimentos exagerados com os braços e enchendo o pulmão de ar eu disse:

– Claro que não visita, está explicado, você não acredita nela. Ela só visita garotinhos que tem coração puro e que não reclamam o tempo todo. Levante-se e vá procurar o que fazer, mente vazia oficina do diabo!

O outro ator seguiu a cena corretamente, levantou-se pegou um pedaço de galho propositadamente posto ali e começou a riscar o chão. O terceiro se encolheu em posição fetal, cuja ideia era convencer o público de que passava mal de fome.

Andei até o centro do palco, uma luz direcionou-se a mim:

– Oh Deus, me abandonaste nesta miséria, neste maldito sertão, nada tenho para oferecer aos meus filhos. Conto histórias sobre fadas e coelhos felizes, mas mal consigo ter forças para sair e encontrar água e comida! Já não temos nem cactos para nos alimentarmos. Vou até a cidade toda semana para encontrar e pedir alimento para esses três, não me incluo, apenas quero que eles sobrevivam.

Era o meu momento, saiam lágrimas dos meus olhos:

– Por favor Deus…

Os atos seguiram entre miséria e perda. Tiveram momentos que percebi a plateia se emocionar com a história. Embora outros atores errando textos e posições, eu dei o melhor de mim. Devo eu ser a estrela mais brilhante desse espetáculo? Lutei tanto para isso. Minhas exigências eram necessárias, pois o povo precisava saber quem eu era.

Várias apresentações e eu ainda estava lá pedindo comida para os meus filhos:

Por favor, alimente minhas crianças.

O público parecia cada vez mais exigente, entreter o público estava cada vez mais difícil. Um dos atores decidiu abandonar a história. Isso me fez ter que fazer adaptações indesejadas.

– Malditos amadores, agora terei que encenar e ensaiar tudo outra vez!

Tudo desmoronou muito rápido, logo perdi mais um, foi pego roubando para comer. Morreu!

– Deus meu, me abandonaste mesmo? Temo que já não tenha força o suficiente. O que preciso fazer? Já doei até meus chinelos, minhas proles estão sendo dispersas ou mortas! Peço ajuda mais uma vez!

A plateia não se importava, pareciam estar conversando entre sí. O pastor da igreja estava presente, obriguei ao meu último moleque a dar todo o sangue naquela apresentação. Rodopiei, meneava a cabeça, fazia movimentos exagerados em prol da atenção merecida.

– Papai está aqui minha criança, vejo seu corpinho me dá tanta dó! Queria poder fazer mais. Posso contar suas costelas, não é engraçado? Acho que consigo levantar-te com um braço. Sei que sua idade não é muita, apenas 5 anos.

Fiz tudo o que podia, abraçava e rodopiava, nenhuma atenção me era dada.

– Malditos sejam, parece que nem estou aqui. Tanto esforço empregado nessa arte…

Nem o pastor deu-me a atenção que eu precisava.

-Deus, por que me abandonaste? Tudo o que podia fazer eu fiz, deixei minha comida para minhas crianças. Não olhais para mim, nem a fada olhou? Acho que o moleque estava certo no final das contas. Oh, pastor! Não nos vê em seu rebanho? Mal tenho forças para gritar. Tenho sede! Carrego minha prole para onde eu vou. Parecemos fantasmas, ninguém nos vê, ninguém nos entende!

Neste momento pego o corpinho do ator que me acompanhou, levanto quão alto eu pude, seus bracinhos e perninhas tombaram.

-É a última vez que peço, ao menos olhem meu filho, vejam, não se movem mais. Será que morreu? Deus não deixe isso acontecer!

Emocionei-me. Chorei com toda minha força, chorei toda minha angústia. A plateia começou a ir embora. Juro que minha força já estava chegando ao limite.

– Deus, acho que entendo o motivo de tudo isso, seria para purificação da minha alma? Perder tudo, esposa e filhos? Me testar como testou Jó? Mas decepcionado deve estar, pois não tenho a força de Jó. Não tive ajuda, não tive anjos e nem fadas. Apenas fome e doença. Minhas forças foram exaurindo-se pela doença que me fora designada. Nada pude fazer por minha família. Nem Deus, nem o pastor…

Tive apenas o olhar do povo, uma hora era de aprovação, outrora de desprezo. Entreguei até o que não tinha.

Aos poucos comecei a tossir, agarrei-me ao pequeno ator que a essa altura jazia em meus braços. Ajoelhei olhei para os céus. Vi a cortina se fechando…

– Sabia que não deveria desistir do Senhor, embora tenha chegado próximo, sempre tive confiança.

Ouvi aplausos. A cortina não abriu mais.

– Obrigado Deus por nunca me abandonar!

 

Foto de capa por Cottonbro em Pexels

2 respostas

  1. Mano, muito legal a sua produção. As entrecenas são interessantes. O melhor de tudo, para mim, é a mensagem para nunca desistir e nem perder a confiança.

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