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A rota do indivíduo

Outro dia, num grupo de Whatsapp que eu acompanho, alguém afirmou que, com 40 anos, o homem chega ao topo da montanha, e que em breve irá começar a descer. Do alto dos meus quase 57 anos, achei o comentário ao mesmo tempo engraçado e irritante. Além de equivocado, é claro.

Na hora, respondi que o que ninguém conta é que a descida pode ser muito mais interessante do que a subida. Quando se está subindo, só se pensa em chegar ao topo e não se aproveita o caminho. Na descida, não se precisa mais provar nada para ninguém e tudo fica mais divertido.

Desde então, tenho pensado nessa imagem do topo da montanha como o momento de apogeu de uma vida, para além do evidente e lamentável ageísmo contido na ideia de que, depois dos 40 anos, tudo é declínio e decadência.

Considero muito curiosa essa obsessão que nossas sociedades têm com o desejo de “chegar ao topo”, como se esse fosse naturalmente o objetivo e o sentido da vida. 

Isso não quer dizer que não existem montes e cumes no caminho de cada um de nós, alguns mais desafiadores do que outros. Mas, eles são apenas um tipo de acidente geográfico como os outros, partes de um caminho muito mais abrangente, que inclui também vales, florestas às vezes escuras, planícies que podem ser áridas, rios, lagos, grutas, clareiras… Quando subordinamos tudo à ideia fixa de chegar no topo (e de ficar nele quando chegamos), limitamos e empobrecemos nossas possibilidades de desfrutar do mundo que nos cerca. 

A verdade é que não consigo deixar de associar essa valorização do “estar no alto” com outra obsessão muito comum, que é a do tamanho como símbolo e marcador da virilidade. Respeitamos e cultuamos o que é grande (e comprido) da mesma forma como privilegiamos o alto sobre o baixo. No fundo, creio que o topo da montanha integra um mesmo universo imaginário que é, em sua essência, masculino e patriarcal, para não dizer heterormativo. É o mundo dos heróis cuja jornada, para ser bem sucedida, tem que ser ascendente. E grandiosa. Um mundo visto como uma batalha que é preciso vencer.

Sempre senti um estranhamento em relação a isso. E passei muito tempo acreditando que o problema era comigo. Achava que tinha que aprender a ser “um homem de verdade”, o que significava, entre outras coisas, colecionar vitórias e chegar ao topo. E me frustrava cada vez que não conseguia, não por incapacidade, mas pelo que desconfiava ser uma total falta de vocação e de desejo de ser assim. O problema, para mim, não era tanto aprender a ser um homem de verdade, mas querer aprender. Era como se eu tivesse vindo com um defeito de fábrica. 

Curiosamente, na minha cabeça isso não estava necessariamente vinculado à orientação sexual. Nunca me senti verdadeiramente culpado por ser gay e por me sentir atraído por outros homens. Mas sentia-me culpado por não ser homem o suficiente, ou melhor, por não desejar realmente ser homem o suficiente. O que, para mim, não tinha nada a ver com o que eu fazia na cama, mas justamente fora dela. Pelo contrário. De uma forma bastante difusa e meio mágica, eu esperava que, de algum modo, a proximidade com outros homens me ajudaria a ser “mais homem”. 

Não sei bem em que momento esse nó começou a se desfazer dentro de mim. Como sugere o filósofo francês François Jullien, as transformações mais profundas são silenciosas, vão acontecendo debaixo de nossos olhos sem que a gente perceba, até que, um dia, nos damos conta de que tudo mudou. Não é que não tenhamos nenhuma agência sobre nossos processos internos, mas tampouco temos um controle absoluto sobre o que nos acontece (outra ideia do imaginário masculino patriarcal: o controle que a vontade deve exercer sobre a realidade, que deve dobrar-se à sua força, ao seu tamanho, à sua grandeza e altura). Para retomar a metáfora do caminho, eu apenas fui seguindo pela estrada fora, seguindo trilhas que me pareciam promissoras, dando com os burros n´água algumas vezes, descobrindo aos poucos que direções me interessavam e quais não. 

Foi assim que, quando dei por mim, percebi que tinha deixado a expectativa de ser um homem de verdade em alguma curva do caminho. Talvez tenha sido a sensação de leveza que senti ao perceber que não carregava mais nas costas esse peso que não era meu, que nunca tinha sido realmente. Talvez (provavelmente) tenha me livrado desse peso aos poucos, até que não sobrasse mais nada. Eu não tinha nenhuma peça faltando. Apenas vim com outra configuração. 

Não sei exatamente quando e como aconteceu. Só sei que foi bom. Demais.

Desde então, olho para os topos das montanhas de outra forma. Eles não me parecem mais um objetivo inatingível, que não mereço e não sou capaz de conquistar, pois, justamente, deixaram de ser um objetivo que devo alcançar para justificar e legitimar quem eu sou, para dar sentido à minha trajetória nesse mundo. Esse sentido já existe pelo simples fato de eu estar aqui, caminhando, mesmo que em círculos às vezes. Ele se constrói e se transforma a cada passo que dou, subindo ou descendo, andando em linha reta ou me aventurando em veredas tortuosas.

Hoje em dia, encontro muita gente que ainda carrega nas costas o peso da expectativa de chegar ao topo. Vejo que esse peso lhes faz o mesmo mal que me fazia e que, apesar disso, as pessoas se apegam a ele, como eu me apegava ao meu. E torço para que, um dia, elas possam se livrar dele, como eu me livrei. E possam olhar as montanhas e subir até o seu topo, se assim o desejarem, mas não para poder dizer que venceram na vida, e sim para, lá de cima, descortinar novos horizontes.

Até a próxima!

PS –  Para ilustrar a coluna de hoje, escolhi “A Rota do Indivíduo”, do Djavan, na linda gravação de André Vidal e Elisa Silveira; “Força Estranha”, de Caetano Veloso, cantada por Gal Costa; e “Fool on the Hill”, clássico dos Beatles, em versão ao vivo com os Eurythmics.

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