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A pele que habitamos

Nossa pele e nosso corpo carregam as marcas da nossa singularidade.

Faz uns dias, rolou uma corrente no Twitter na qual as pessoas tinham que postar uma foto sua na época do ensino médio e outra atual. Eu não participei, primeiro porque no “meu tempo” o ensino médio se chamava 2º grau, e depois porque todas as minhas fotos desse período são analógicas e eu morro de preguiça de digitalizá-las. Mas gostei de acompanhar as fotos dos meus amigos e de verificar o quanto mudaram com o tempo. 

Depois de ver várias fotos dessas, me dei conta de que, de um modo geral, eu achava as pessoas nas fotos do ensino médio todas meio parecidas, enquanto nas fotos recentes eu identificava e reconhecia a singularidade de cada uma. Como se, ao longo do tempo, o que nos torna singulares e irredutivelmente nós mesmos fosse se tornando cada vez mais visível, inscrevendo-se na nossa pele.

Ao mesmo tempo, aos 56 anos, tenho tido com cada vez mais frequência a experiência de me olhar no espelho de relance e reconhecer em mim traços e gestos do meu pai e do meu tio, entre outros familiares mais velhos. Nesses momentos, fica claro para mim que faço parte de uma linhagem genética que parece se tornar mais evidente com o tempo. 

Isso tudo me fez pensar na ideia de individuação, um conceito central da psicologia analítica desenvolvida por Carl Gustav Jung. Não sou um conhecedor profundo do pensamento junguiano, mas tenho simpatia pela ideia de um processo de crescente singularização, ou melhor, de crescente tomada de consciência da própria singularidade que não exclui (ao contrário, pressupõe) uma integração com algo que ultrapassa as fronteiras estreitas da individualidade. E que se reflete no nosso corpo e na nossa pele, essa pele que nos foi dado habitar durante um tempo. 

Na minha visão, todos nós nascemos como um campo de possibilidades. Nossa singularização começa na fecundação, que delimita esse campo de possibilidades na esfera genética, a partir do encontro de um espermatozoide específico com um óvulo também único. Além disso, nosso campo de possibilidades é condicionado pela situação familiar e socioeconômica dentro da qual nascemos. E é dentro destes limites que poderemos iniciar nossa caminhada rumo à singularidade.

O processo de socialização a que somos submetidos durante nossa infância e adolescência pode fortalecer esses fatores condicionantes, limitando ainda mais nosso campo de possibilidades ou, ao contrário, preparar-nos para questionar esses limites e ir além das nossas circunstâncias. Não é à toa que a educação é um campo tão estratégico nos embates culturais e políticos da atualidade. Expor crianças e adolescentes à riqueza da diversidade é um risco intolerável para aqueles que não conseguem lidar com a pluralidade nem admitir que outros possam ter acesso a oportunidades ampliadas.

De qualquer forma, creio que chegamos ao final da adolescência bastante confusos (quero dizer, aqueles de nós que tivemos direito e acesso a uma infância e a uma adolescência “normais”). E talvez o que eu tenha visto nas fotos dos meus amigos como semelhança seja apenas a expressão comum dessa confusão, que mistura padrões de comportamento, atitudes e aparência internalizados ao longo dos anos de formação com as palpitações do desejo que apontam para a possibilidade de que outros caminhos sejam possíveis. Tudo isso ainda vivido como um processo interno, antes que a singularidade de cada um tenha aflorado à pele de modo perceptível.

Eu sinceramente creio que todos nós, em algum momento, nos vemos diante da constatação de que não cabemos em nenhuma forma pré-estabelecida, porque cada um de nós tem que fabricar a sua própria forma. Alguns aceitam seguir essa trilha, enquanto outros preferem ajustar-se aos modelos existentes sem questioná-los. 

Em algumas culturas, a ritualização de diversos momentos do processo de singularização (os tais rituais de iniciação) procura dar a esse processo um quadro de referências mais estável e contribui para reforçar a interdependência entre o pessoal e o coletivo (a própria noção de indivíduo não faz muito sentido nesse contexto). Nossa cultura fortemente individualista, entretanto, faz com que a relação entre indivíduo e sociedade seja sempre problemática e tende a fortalecer o sentimento de isolamento em momentos de crise. Para nós, aprender a conhecer e explorar nosso campo de possibilidades é quase sempre uma experiência pessoal e intransferível.

Desde a infância, desde a gestação mesmo, tudo o que vivemos vai deixando marcas no nosso corpo e na nossa pele. E essas marcas contam a nossa história de vida e dão textura e densidade ao que somos e vamos nos tornando com o tempo, dão testemunho de nossa jornada não necessariamente heroica, mas absolutamente única, de descobertas, dores, alegrias, bloqueios e desbloqueios no nosso campo de possibilidades, que só se esgota quando abandonamos a nossa pele e o nosso corpo, ou eles nos abandonam, fixando a possibilidade em destino.

Creio que esse processo se acelera no final da adolescência quando, passada a puberdade, nosso corpo adquire uma forma mais “estável” depois de um longo período de formação, e vai se tornando cada vez mais nosso (a esse respeito, é fascinante, por exemplo, o depoimento da Jane Fonda, que afirma que só com a proximidade dos 60 anos passou a habitar plenamente o seu corpo). Para mim, a singularização realiza-se plenamente quando nos sentimos plenamente à vontade (ou tão plenamente quanto possível) dentro do nosso corpo e da nossa pele e nos tornamos realmente familiares e amigos do nosso campo de possibilidades, de seus limites, mas também de tudo o que ele pode nos oferecer como espaços de liberdade, de criação e de prazer.

Por isso, voltando às redes sociais e ao Twitter, causa-me sempre espanto e tristeza o uso indiscriminado desses filtros que buscam justamente apagar as marcas da pele, transformando rostos e corpos numa superfície lisa e sem textura, em nome de uma uniformidade sem graça e, na minha opinião, sem vida e sem beleza. Como se fosse possível, e mesmo desejável, eliminar de nós mesmos o que nos torna nós mesmos.

Fala-se muito hoje em autoestima, em orgulho de se ser quem se é. Para mim, não há autoestima possível sem o acolhimento e a aceitação das marcas da passagem do tempo em nossos corpos, sem a celebração da textura que nos singulariza e, ao mesmo tempo, nos aproxima dos que nos antecederam (pois singularizar-se não é apenas reconhecer e abraçar o que nos faz únicos, mas também assumir o que, em nossa singularidade, herdamos dos que vieram antes de nós, mesmo que seja para transformar e ressignificar esse legado).

Meu corpo, minha pele, minhas marcas, minha textura, minha vida singular.

Até a próxima!

PS 1 – Escrevo essa coluna um dia depois do Brasil ter atingido a marca oficial de 500 mil mortes provocadas pelo Covid. Meio milhão de vidas interrompidas, meio milhão de campos de possibilidades impedidos de se desenvolver plenamente. Não há palavras para descrever a dimensão dessa tragédia, coletiva e pessoal. Que essa ferida que ainda sangra no corpo do nosso país nunca seja esquecida e que honremos a memória de todos os que se foram criando as condições para que esse genocídio nunca mais possa se repetir.

PS 2 – Para acompanhar musicalmente a coluna de hoje, selecionei três canções que falam de pele, de alma e de singularidade: “Alma”, com a Zélia Duncan; “Umbigo”, com a Tetê Espíndola e o Chico César; e “Flor da Pele”, com Raquell Luz e Zeca Baleiro.

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