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A estranheza nossa de cada dia: a diversidade masculina na jaula de aço

Na foto tem um homem sem camisa com seu rosto na mão com fios, como se fosse um android, analisando sua forma masculina #pracegover

“Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também”
A Luz de Tieta – Caetano Veloso

(Ouça no Spotify)

Por muitos anos o ritmo dançante da canção A Luz de Tieta de Caetano Veloso distraiu a minha atenção para a perspicácia dos versos que cito na epígrafe que abre este texto. Anos depois, recebi uma carta que trazia os mesmos versos como abertura.

O poeta baiano, inicia a estrofe indicando que há “alguém” em nós. Um familiar desconhecido – para citar o célebre livro de Sigmund Freud que chamou esse alguém em nós por Unheimliche. Sem tradução literal, o termo Unheimliche aponta para o inquietante, o estranho-familiar ou a inquietante estranheza. Trata-se no limite de algo em nós que não é propriamente desconhecido, mas, estranhamente familiar e que nos suscita angústia, confusão e estranhamento. Em muito dentre nós esse alguém remonta àquilo que é em nós o conhecido, mas secretamente recôndito, silenciado. Em 2018 o célebre livro de Freud ganhou uma edição brasileira com uma nova tradução: o infamiliar, ou, esse alguém que existe em nós.

Na sequência, o poeta afirma que esse alguém, esse estranho, esse perturbador, esse sinistro essa inquietante estranheza “brilha mais que milhões de sois.” Efeito hiperbólico que logo se encaixa em efeito de oxímoro: “E que a escuridão conhece também. Luz e sombra, conhecido e desconhecido expressando os fatores concebidos como opostos e que, seja confrontando-se na hostilidade, seja atraindo-se no amor, se reúnem na coniunctio que, para Carl Gustav Jung, era a imagem alquímica da individuação, o opus, a suprema realização.

Talvez esse seja esse o sentido que o poeta – antena da raça – captou: a condição humana é marcada pela diversidade na unidade. Somos uma identidade matizada por múltiplos sentidos, um multiverso de forças opostas que se conflitam e se integram constituindo a anatomia mais básica da psique humana. Ora se atraem por simpatia, ora se repelem por conflito.

A despeito da sabedoria expressa pelos poetas, alquimistas e psicanalistas a sociedade contemporânea impõem a homens e mulheres um padrão único de existência. Contrariando a diversidade plural constituinte do pluriverso, os sistemas de dominação social constituem ideologias que reforçam e disseminam estereótipos de masculinidade esquartejando a diversidade em prol de um padrão estabelecido.

Para adaptarem-se ao padrão social, muitos homens precisam amputar aspectos significativos do seu ser ou estender aspectos estranhos para corresponder às expectativas do machismo cultural. O padrão institui aos homens que o tamanho do pênis regula a sua masculinidade; sentencia que não há espaço para demonstrar sentimentos; treina os adolescentes para que percebam que a masculinidade do homem é mensurável pelo dinheiro, pela marca do carro e pelo sucesso profissional. Essas bitolas se fazem presente nos ambientes familiares, escolares, empresariais, políticos e midiáticos.

Uma vez que a essência deve ser suprimida em prol do estereótipo, a adaptação ao padrão compromete a complexidade do ser humano, engaiolando-o no sistema patriarcal. O homem torna-se prisioneiro de uma jaula de aço na qual ele mesmo é parte dessa jaula performando uma das grades.

Reprimir a diversidade tem um custo para os homens. Eles se tornam estranhos para eles mesmos – unheimliche, infamiliar. Estranhos dentro de sua casa, de seu corpo. Esse estranhamento obscurece ainda mais o sombrio impelindo ao desconhecimento de si próprio.

Não se pode supor que exista uma versão universal de masculinidade. Mesmo que haja uma versão hegemônica ela nunca será única. É nesse sentido que não podemos falar em masculinidade no singular.

Em 1967 Caetano Veloso estreou sua carreira de sucesso cantando: Caminhando contra o vento; sem lenço sem documento; no sol de quase setembro; eu vou. Caminhemos contra a domesticação do ser e da diversidade para seguir vivendo com muita Alegria, alegria para que a tigresa possa mais do que um leão. (Ouça Alegria, Alegria no Spotify).

Para ver outros textos de Jorge Miklos, confira sua coluna Antropos.

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