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A distração do psicopata

O gosto do ser humano pela morte, pelo que é grotesco às vezes passa dos limites do bom senso. Isso fica claro nesse momento em que eu escrevo esse texto, uma noite de sábado, 19 de junho de 2021. Nesse momento, mais de duzentos policiais caçam um psicopata à solta pelo cerrado goiano, mas sem sucesso. E a sua saga caiu imediatamente nas delícias dos ávidos, sedentos por sangue, que o querem morto.

Classificado como psicopata e serial killer, Lázaro Barbosa, é um criminoso baiano radicado em Goiás. Entrou e saiu da cadeia algumas vezes. Portanto, sua curta vida de 32 anos foi marcada por prisões e escapadas. Sua atual fuga tem a ver com a fragilidade de nosso sistema penitenciário que falha duplamente. Ou seja, por encarcerar equivocadamente as pessoas ou conceder a elas liberdade em momento inadequado. Sem comunicação, os sistemas prisionais que o contiveram, não ofereceram a ele a abordagem pedagógica adequada ao seu caso. Mesmo com um “diagnóstico” de psicopata cruel, agressivo e imprevisível, ele foi solto em indultos após tentativas de ressocialização.

Ao fugir de Ceilândia, Lázaro entrou mato adentro. Ele passou por pequenas propriedades rurais dos municípios de Águas Lindas e Cocalzinho, aqui em Goiás. A menos de 100 km de onde estou, em linha reta. Matou pessoas, assustou e sequestrou outras e desde então tem sido caçado sem trégua por centenas de policiais. Esse grupo está armado até os dentes com drones, cães farejadores e helicópteros. Mas nada de achar Lázaro.

Enquanto isso, as cidades estão em polvorosa. Os arredores, a parte leste do Entorno de Brasília, onde estou, está, por isso, apreensiva. A qualquer momento ele pode fugir mais ainda, roubar veículos, em questão de hora ele pode estar no meu município. Ou em outros lugares aqui perto.

Quem de fato é Lázaro?

Não sei sei ele estará preso quando esse texto for publicado. Ele é bom em fuga. Mas tudo indica que ele está acuado, andando em círculos ou sem rumo. Duzentos e tantos homens “preparados” para combater o crime contra um bandido faminto, sedento, nervoso, agressivo, que aterroriza a região. Ele é um cara comum, pardo (porque não é escuro demais para ser negro), por isso invisível. Vem de origem pobre, é conhecido por ser, desde criança, degenerado, mau, cruel.

Sites de notícia e reportagem televisivas pintam-no como uma espécie de louco ligado até mesmo a rituais de magia negra. Lázaro, por isso, não é visto como produto do adoecimento mental que a opressão social produz. Não é o tipo de criminoso que pode ser entendido como fruto do meio, porque não queremos ver isso. Ao contrário, precisamos ver nele a culpa individual, porque só isso nos torna livres do sangue que ele derrama.

O dia em que descobrirmos que Lázaro é culpa de uma sociedade que semeia crime e colhe violência, teremos descoberto nosso problema. E talvez a nossa maior fraqueza. A base das sociedades de cultura e moral judaico-cristã ocidental é a hipocrisia. Isso porque, não vemos nossos pontos fracos. Não entendemos como o capitalismo e a exclusão produzem pobreza e pressionam os indivíduos. Não entendemos como a mentalidade humana se forma individualmente.

Psicopata versus deuses

Pior ainda, a gente tende a crer que ensinar valores religiosos basta. E isso nunca é o suficiente. A sociedade funciona quando os indivíduos, ao invés de amar a deuses, anjos, santos e outros, preferem amar a si e ao próximo. Lázaro não ama. Psicopatas não amam, não sentem remorso. Não sabemos exatamente porque existem. E quando existem, lamentamos sua ação criminosa pedindo a deus que nos livre dele. Livrai-nos de Lázaros.

Ou seja, ele é o tipo perfeito de inimigo comum. A nossa sociedade precisa dessa catarse. De acreditar que a fonte do mal é o espelho de seus medos. Isso acontece no momento em que muitas tantas outras mortes já foram totalmente banalizadas.

O psicopata é um entre milhões de santos e anjos de título de eleitor na mão, votando em presidentes que deixam milhões de brasileiros adoecerem. E deixam meio milhão morrerem sem fazer nada para evitar isso. Não nos vemos psicopatas, não nos vemos culpados por essas mortes. Muitos que amamos e abraçamos, inclusive, acreditam em quem deixa a pandemia de COVID-19 se espalhar. Portanto não temos culpa nenhuma. Somos, por isso, fascinados pela morte, pelo erro, é bom vê-lo na pessoa de um psicopata. Assim, podemos continuar nesse deleite sem culpas maiores, ou culpa nenhuma.

Corra, Lázaro, um dia a incompetência te alcança

Não temos culpa por apoiarmos uma sociedade capitalista que cria pobres criminosos e incrimináveis. Por isso, apostamos num governo truculento que penaliza tudo e todos, porque não querermos ter dó de quem merece. Como sociedade, fizemos muito pouco até agora, sob a pressão de milhões de doentes e meio milhão de mortes oficiais.

E continuamos a não fazer nada, ou fazer muito pouco. Indignamo-nos, e só.

E nos distraímos com a saga de Lázaro, de vez em quando surge um psicopata como esse para nos distrair do óbvio: todos nós temos as mortes de Lázaro e do governo brasileiro nas nossas mãos. Lázaro mata sem culpa. O povo também deseja a sua morte sem culpa, fala de demônio, rituais. Enquanto estamos aqui, notícias em grupos acusam-no de serem o próprio diabo. As mesmas pessoas que acreditam que bandido bom é bandido morto. As mesmas que elegeram o tal governo dos 500 mil mortos.

Enquanto procura Lázaro, a polícia depreda terreiros de candomblé, destruindo altares. A desculpa é procurá-lo.

Amém?

Quem quiser rezar, que reze.

Imagem de capa: divulgação, Rede Globo.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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