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A arena, a ágora e o xirê

000Passei um bom tempo afastado desse espaço. Não foi algo planejado. Mas aconteceu, por uma combinação de motivos que inclui a preguiça e a inércia, mas também uma certa necessidade de recolhimento e talvez uma reação meio instintiva a um ambiente externo que eu tenho considerado inóspito, para dizer o mínimo.

Creio que, às vezes, o nosso ritmo interno entra em descompasso com o mundo que nos rodeia. Pode estar rolando um carnaval lá fora e, dentro de nós, o clima é de concerto barroco. Ou vice-versa. Não faz diferença. Todas as músicas e todos os ritmos têm o seu tempo e lugar. O importante aqui é essa sensação de estranhamento. Que, como já tive a oportunidade de dizer, não é nova para mim. Mas, cada vez que ela se manifesta, é de um jeito um pouco diferente. Como uma lanterna que vai iluminando partes ainda não vistas ou exploradas do caminho.

Dessa vez, o foco tem sido a arena ruidosa na qual se transformou o espaço público no qual navegamos e interagimos hoje.

De acordo com a Wikipedia, a palavra “arena” vem da Roma antiga. Era o espaço onde se realizavam as lutas de gladiadores naquela época. Atualmente, as arenas são utilizadas para todo tipo de atividade esportiva ou cultural. Continuam, em certa medida, associadas a práticas violentas, como as touradas. Não é minha pretensão aqui fazer uma história minuciosa dos usos desse espaço. Convido apenas o leitor a aceitar, por um momento, a hipótese da imagem da arena como uma metáfora para um espaço organizado em torno do confronto, normalmente violento, cujo objetivo final é a derrota incondicional dos adversários, sua eliminação, se necessário.

Naturalmente, a arena só existe enquanto espaço público porque, justamente, ela atrai o “público”, entendido aqui enquanto audiência. O confronto é fonte de prazer, tanto para quem participa dele quanto para quem o assiste. Um prazer genuíno e real que nasce da volúpia e do erotismo do combate pela vida que a arena põe em cena. A violência e a brutalidade ritualizadas e irresistivelmente atraentes.

Quando entro nas redes sociais atualmente eu sinto exatamente essa energia. Todo mundo gritando raivosamente, brandindo suas opiniões e certezas como armas voltadas contra todos os demais, enquanto as torcidas se formam de cada lado e pedem sangue, sempre mais sangue. Quanto mais treta, quanto mais lacração, quanto mais cancelamento, mais “engajamento”, mais diversão, mais entretenimento.

Também não me parece uma coincidência o frenesi que se forma todo ano em torno de um reality show onde as pessoas ficam confinadas, são obrigadas a conviver umas com as outras durante semanas a fio diante dos olhos da audiência e estimuladas a se entredevorar até que só sobre uma, escolhida pelo público. Quando vejo os comentários sobre esse programa (não assisto, mas acompanho com enorme interesse as discussões em torno dele, que considero um fenômeno cultural de primeira ordem, justamente por revelar tanto sobre quem somos hoje), percebo claramente a lógica da arena em ação. Só a treta nos diverte.

Gostaria de deixar claro que faço essas observações sem nenhum senso de superioridade moral. Não me considero melhor nem mais iluminado do que as pessoas que parecem estar mergulhadas nessa lógica do confronto (inclusive aquelas que julgam a audiência do reality show e buscam desqualificá-la, sem se dar conta de que os termos em que conduzem a discussão reiteram, reforçam e ajudam a perpetuar a própria dinâmica do confronto). Entretanto, por algum favor divino ou defeito de fabricação, sinto-me estranho a essa lógica e, de dentro da minha pequena bolha, tento entendê-la de fora e pensar se não pode haver outros modelos para inspirar a constituição do nosso espaço público.

Antes dos romanos “inventarem” a arena, as cidades-estado da Grécia clássica já tinham desenvolvido uma forma própria de constituição e ocupação do espaço público: a ágora.

Novamente segundo a Wikipedia, a ágora era “um espaço livre com edificações, onde os cidadãos costumavam ir, configuradas pela presença de mercados e feiras livres em seus limites, assim como por edifícios de caráter público”. Era nesse espaço que ocorriam debates políticos e eram também realizados os tribunais populares. É, ainda hoje, considerado um símbolo da democracia grega, um espaço de criação e exercício da cidadania (que, como sabemos, era limitada aos homens adultos livres. Mas ainda assim a democracia grega foi o embrião de um ideal importante para a história da humanidade, do qual nos beneficiamos hoje.).

Na ágora, o conflito e a diferença de opiniões e perspectivas não estavam ausentes. Mas a ênfase era na construção e no fortalecimento de um espaço comum. Mais uma vez, estou menos interessado numa reconstituição histórica fiel do que na exploração de uma metáfora para uma outra possibilidade de ocupação e de dinâmica do funcionamento do espaço público.

Naturalmente, o espaço da ágora proporciona menos “pathos” (que uso aqui no sentido de paixão, emoção) do que a arena. A ágora seria mais um local do “logos”, da razão. Mas para alguma coisa deve servir sermos animais racionais. Temos a faculdade de olhar para uma situação, analisá-la e escolher que caminho seguir. Talvez esteja na hora de fazermos isso em relação ao espaço público que queremos para nós. Pessoalmente, não sou muito otimista e acho que as pessoas vão preferir continuar mergulhadas no turbilhão de emoções fortes e intensas proporcionadas pela arena. Ao mesmo tempo, não me sinto obrigado a participar desse circo sangrento. Posso continuar a cultivar o meu jardim dentro da minha bolha e a dar os meus pitacos extemporâneos.

Enquanto escrevia e relia esse texto, percebi que esses apontamentos um tanto impressionistas e superficiais sobre o espaço público estavam muito eurocêntricos. Arenas e ágoras são modelos que se inserem numa tradição ocidental, à qual creio que pertencemos, mas que não é a única possível. Certamente, eu me disse, deve haver em outras tradições modelos de ocupação e uso do espaço público (ou do equivalente do que identificamos como espaço público) igualmente válidos e inspiradores.

Foi então que me lembrei do espaço sagrado do xirê, dentro da tradição afro-brasileira do candomblé, à qual também pertenço. Os rituais públicos do candomblé se organizam em torno do xirê, a roda de música e dança que celebra e louva todos os orixás, de Exu a Oxalá. Cada orixá é invocado por meio de ritmos e cantigas que exibem e exaltam suas características próprias, seus combates, suas afinidades e suas incompatibilidades. Até que todos se reúnem sob o alá, o pano branco de Oxalá que a todos acolhe em suas diferenças, encerrando o ritual.

O que, para além da fé religiosa, pode nos ensinar o xirê sobre um modo de estar no mundo coletivamente? O pode nos dizer sobre os “recursos”, na concepção desenvolvida pelo filósofo francês François Jullien, oferecidos pela cultura e no pensamento afro-brasileiro de raiz yorubá? (de modo muito rudimentar e resumido, Jullien propõe substituir as noções de “diferença” e de “identidade cultural” pelas de “intervalo” entre culturas e de “recursos” próprios e singulares de uma cultura que organizam um jeito único de pensar o mundo, mas que estão “disponíveis” para fecundar outras culturas).

A resposta é naturalmente complexa demais para ser respondida em poucas palavras. Mas talvez seja possível sugerir que, em relação ao modo de ocupação do espaço comum, o xirê não adota nem o modelo do confronto apresentado pela arena, nem aquele do debate racional atualizado pela ágora, e aponta para um modelo que se baseia na celebração: da vida, do estar junto, dos corpos, do encantamento, da festa. Um modelo onde o que importa não é vencer o outro, pela força ou pela razão, mas simplesmente afirmar sua presença no mundo e afirmar a presença do mundo em nós, individual e coletivamente.

Até a próxima!

 

PS – As músicas que selecionei para ilustrar a coluna de hoje estão entre as minhas preferidas e, acredito, refletem de forma muito apropriada o espírito que me conduziu enquanto escrevia: “While my guitar gently weeps”, com os Beatles, a clássica “Dê um rolê”, com Gal Costa, numa versão mais recente, e “We don´t need another hero”, com a maravilhosa Tina Turner.

 

 

 

2 respostas

  1. Oi meu amigo Paulo. O nosso Xire e todo espaço coletivo proporcionado pelas religiões afro brasileiras, principalmente, o candomblé nós oferece um modelo afro-centrado na pessoa e em tudo que ela carrega, como seus ancestrais e divindades. Ali o respeito impera. Este respeito que falta pela coisa pública e a coisa do outro no mundo virtual. Um mundo virtual pobre de relações humanas e afeto,por isso a violência. Foi ótimo te ver retornar a escrita
    Xero

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