“Um dia não pode ser igual ao outro
No entanto, me sinto como ontem:
Diferente”
Dan Nakagawa, Apartamento 133.
Quando liguei o computador mais cedo e vi minha área de trabalho cheia de ícones de arquivos e pastas, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: quem sabe esse ano eu finalmente organizo meus documentos. E a segunda coisa foi a suspeita de que muito provavelmente isso não vai acontecer.
E aqui estava eu, na primeira tarde de 2025, começando a escrever uma coluna que provavelmente será publicada com algum atraso (ela normalmente sai às quartas e dessa vez está saindo na quinta) e com a sensação meio incômoda de que já entrei o ano novo em dívida comigo mesmo. Não é uma sensação nova nem estranha. Mas que parece se acentuar um pouco nesses momentos rituais de passagem como inícios de ano.
É como se a mudança no calendário exigisse de nós que mudemos também. E não só mudemos, mas mudemos no sentido de “uma versão melhor de nós mesmos”: mais organizados, mais saudáveis, mais isso, mais aquilo…
Eu acho isso tudo muito aborrecido. E, no entanto, não consigo escapar dessa sensação de estar em dívida comigo mesmo.
Quando comecei a pensar na coluna de hoje e ocorreu-me o seu título, eu pretendia vagamente falar de mudanças. Não por acaso, eu estou no meio de um processo de mudança que se iniciou na metade do ano que acaba de terminar e que ainda não foi concluído. Já estou há cerca de seis meses (e até mais, se for contar os preparativos para a mudança real) num estado meio transitório, sem um lar para chamar de meu. Nossa casa encontra-se nesse momento desmontada e embalada num depósito de Brasília, na espera de que a gente tenha um endereço onde ela possa ser entregue, o que só deve acontecer dentro de um ou dois meses. Além disso, recentemente descobri a possibilidade de antecipar planos que eu tinha somente para daqui a alguns anos para um futuro muito mais próximo (tecnicamente, hoje mesmo, se eu quiser), o que significa que, mesmo depois de concluída a mudança atual, ela talvez seja (e provavelmente será) apenas uma etapa de outra mudança, muito mais profunda.
Em outras palavras, não sei bem o que esperar do ano novo. Sei apenas que ele deverá exigir de mim decisões, respostas e atitudes. E, para quem tem a tendência natural de preferir deixar acontecer a fazer acontecer (escrevi sobre isso nessa coluna), essa perspectiva causa uma certa angústia, além de reativar medos e inseguranças ancestrais (como disse nessa outra coluna recente).
A sensação de estar em dívida comigo mesmo faz parte desse pacote. Creio que, mesmo quando a gente se esforça para se libertar das expectativas que são projetadas em nós desde que nascemos e que são permanentemente reforçadas ao longo das nossas vidas, é muito difícil, talvez impossível, de nos desvincular totalmente de uma certa imagem ideal de nós mesmos, de quem nós achamos que desejamos, podemos e devemos ser. A tal versão melhor de nós mesmos que, acreditamos, expressaria plenamente o nosso potencial. A versão de nós mesmos que seria finalmente capaz de cumprir o seu próprio destino.
No fundo, eu sei que esse eu ideal é uma projeção, uma fantasia, e que um destino só se cumpre retrospectivamente, como diriam talvez os existencialistas. Mas sei também que o problema real para mim agora não é organizar ou não meus documentos e minha área de trabalho.
Há alguns anos, eu estava num momento muito escuro da minha vida, vivendo num lugar onde eu não queria estar e tendo que lidar com situações muito penosas no trabalho. Eu às vezes saía para caminhar na hora do almoço, e a imagem que me vinha era a de estar perdido no oceano me segurando num pedaço de madeira. Eu sabia que em algum momento voltaria a encontrar terra firme, mas meu medo maior era não ter energia para esperar esse dia chegar e largar o pedaço de madeira a qualquer momento e me deixar submergir. Não eram ideias suicidas, era mais um impulso de me entregar à depressão. Depois de uns meses, esse desânimo profundo passou e eu consegui de alguma forma encontrar um modo de aguentar tudo aquilo até o dia de ir embora, que finalmente chegou (ter conhecido pessoas legais certamente ajudou).
Nem sei bem porque a lembrança desse tempo me veio agora. Foi uma situação à qual eu nunca voltei (e espero não voltar), mas que nunca esqueci. Sempre que ouço algumas músicas, como Dark Road, com a Annie Lennox, e King of Sorrow, com a Sade, eu me transporto novamente para lá, como quem toca uma cicatriz e recorda um corte profundo, sem felizmente reabrir a ferida.
Creio que o que me aflige hoje é menos a distância que me separa de uma suposta versão melhor de mim mesmo do que um medo de voltar a me perder de mim mesmo (mesmo que “mim mesmo” seja como obra de igreja, uma construção que nunca termina). Um medo que aparece sempre que as possibilidades de mudança apontam para transformações mais profundas. E que se desdobra em outro medo, que é o de não estar à altura dessas transformações (“não ser digno do que nos acontece”, como diria Deleuze). E que, aí sim, me deixaria em dívida comigo mesmo.
O que me lembra mais esses versos lindos de Apartamento 133, de Dan Nakagawa:
“E sei que está ali
Como na luz do dia anterior:
O mais íntimo dos mistérios de quem já foi noite a noite inteira
E agora é manhã”
A tarde passou, já é noite. Não me sinto mais em dívida com nada nem com ninguém. Porque sinto que, nesse momento, estou sendo inteiro, como procuro ser na maior parte do tempo, e que é o melhor que eu posso fazer por mim mesmo.
E, nesse momento, tenho apenas uma certeza: esse ano não vai ser igual aquele que passou. Nunca é.
Feliz Ano Novo para todos, todas, e todes!
E até a próxima!
PS – A playlist um pouco longa de hoje começa com Até Quarta-Feira, com Marcos Moran, e depois fica um pouco mais introspectiva e talvez sombria. Sou meio espírito de porco mesmo e de alguma forma resolvi ir contra a atmosfera um tanto eufórica do réveillon. Então escolhi Apartamento 133, com o Dan Nakagawa e a Camila Morgado; o Theme from Mahogany, na gravação que adoro dos King’s Singers; o clássico do Geoge Harrison, All Things Must Pass, na linda gravação do Willie e Lukas Nelson; Dark Road, com a Annie Lennox; e King of Sorrow, com a Sade.
Respostas de 8
Sou fã dos seus artigos. É sempre um prazer lê-los, refleti-los e vivê-los! Parabéns, mais uma vez, e sempre nos presenteie com tudo isso e muito mais!
Muto obrigado pela leitura e pelo carinho!
Excelentes reflexões. Eu tinha essa mesma preocupação: me adequar ao tempo dos outros. Decidi em 2010 que não faria mais isso. É no meu tempo. O segredo foi me organizar de uma forma que cumpro as metas no decorrer da semana. Consequência: desde então não abro computador no fds. Ganhei horas e horas de tempo livre.
Pois é, essas pequenas conquistas são tão importantes para nosso bem estar. Grande abraço!
Gostei do texto. Me identifiquei bastante.
Um excelente 2025 para você também!!
,<3
Muito obrigado pela leitura, querido!
Seguimos te acompamhando, amigo! FELIZ 2025! Que venham boas novidades!
Muito obrigado! Feliz Ano Novo!