Vale Tudo

Quero falar de uma telenovela. Da Rede Globo. A famosa Vale Tudo de 1988. Isso tem a ver com minha coluna? Sim. Estamos falando de uma das mais importantes novelas que conhecemos, e sua temática é o poder e a corrupção fora dos meios políticos, no dia a dia brasileiro. Obviamente eu tive de assisti-la inteira depois que passou. Apesar ter nítidas lembranças de vê-la na TV, em 1988 eu tinha apenas sete anos de idade, incapaz, portanto de interpretá-la.

A novela enfoca o poder sob outros aspectos, pois não não critica diretamente os governantes. Mas claramente, a condução da economia política do país é uma personagem sem rosto na novela. Vale Tudo mostra, acima de tudo, como as pessoas são pressionadas pela necessidade. A produção mostra pessoas de classe média e classe alta numa trama que envolve a esfera da vida de pessoas mais abastadas e suas dificuldades.

Classe subalterna

A grande jogada dos autores da novela (Leonor Bassères, Aguinaldo Silva e Gilberto Braga) foi mostrar a classe média em seu papel inferior. Pressionadas pelo desemprego, o fim de privilégios, as pessoas que ganhavam bons salários passaram a ver a renda derreter antes do final do mês.

O casal romântico da novela é formado por pessoas de classe média, Raquel e Ivan. Ela vive na recessão desde que sua filha lhe dera um golpe, e vive de vender comida na praia, até se tornar dona de uma grande rede de restaurantes. Já ele, é demitido no primeiro dia em que iria ocupar um cargo melhor numa empresa que abre falência. Isso faz com que ambos tenham uma caminhada do fracasso para o sucesso. Raquel ganha com seu próprio esforço sua riqueza. Já Ivan ascende numa empresa em meio a estratégias desonestas. Sua ambição chama a atenção da chefia da empresa, especialmente da dona, a icônica vilã Odete Roitman, que articula para que ele ocupe um cargo de chefia e também se case com sua problemática filha, a alcoólatra Heleninha.

Economia vilã

Na novela a crise assola a todos, menos aos poderosos magnatas da TCA, empresa em que Ivan conhece o sucesso financeiro. Sua dona, Odete Roitman, é uma mulher má e ardilosa. Vive na Europa, viaja o mundo inteiro e vem passar uma temporada no país para arrumar a vida de seus filhos. Assim, ela casa Helena e Afonso com pessoas ambiciosas, enquanto se envolve com homens mais novos que ela paga para ficarem com ela.

A vida do núcleo pobre da novela, que habita uma vila do Catete é o espelho da crise. A família de Ivan, que mora num apartamento da Zona Sul também sofre, principalmente quando o pai idoso de Ivan, Bartolomeu, perde o emprego num jornal decadente. A vida doméstica das pessoas está em foco, principalmente quando se mostra a diferença entre pobres e ricos. Portanto, a trama mostra as dificuldades com a inflação do final dos anos de 1980. Mesmo assim, a extrema pobreza não aparece diretamente.

A economia instável virou um momento propício para golpes de toda natureza, porque as pessoas estavam desesperadas. Umas pelo dinheiro que faltava para as contas do mês. As outras por lucrar com as oportunidades. Na novela, pobres e ricos digladiam uns com os outros para ganhar dinheiro a todo custo. A honestidade é o tempo todo posta à prova. Por isso, essa novela é muito importante para consolidar, naquela geração, a ideia do povo brasileiro como corrupto e desonesto.

E a política?

Assim, fica clara a opção dos autores pelo foco na corrupção em esferas corporativas, assim como na vida cotidiana. Se a novela é um retrato do país, falta-lhe a metade. A ausência de reflexões sobre a política é muito grande e notada. No entanto, um momento específico da trama mostra os negócios da TCA, expondo-os de modo detalhado. Conflitos por terras ou mesmo a política local de um município do litoral do Nordeste mostram como agem grandes corporações atrás de lucro fácil, mas nenhuma forma de crítica à delicada situação política, três anos depois do fim da Ditadura Militar. Desse modo, pouco se fala da Constituição. A vida das pessoas dá errado por causa da economia e do jeitinho brasileiro. Então, nosso problema é de origem moral e econômica.

Ambição e morte: vale tudo para vencer na vida?

Como toda história em que o dinheiro faz parte, morte está presente. Morre a vilã mais importante numa cena inesquecível. É a marca registrada de Gilberto Braga e suas histórias realistas. Aguinaldo Silva também ficou na realidade. Nada de fantasia. Portanto, o assassinato da malvada Odete é um exemplo de crime real. Ela morre pelas mãos de Leila, mulher de seu mais leal empregado. Leila descobre que o marido tem uma amante e atira na sua direção, sem ver de quem se tratava.

No entanto, a morte de Odete é o fim do seu ciclo de maldades de desonestidades. Ela só morreu porque Marco Aurélio a atraiu para uma armadilha no apartamento dela. Ele é seu antigo genro, ex-marido de Helena, que é alcoólatra. Seus problemas pessoais e psicológicos vêm do trauma pela culpa da morte seu próprio irmão num acidente de carro. Helena bebia por causa de Marco Aurélio e sua infidelidade. Odete pôs nela a culpa pelo acidente que matou o seu filho mais velho, aproveitando-se do estado de embriaguez da Helena. No entanto, Odete era a responsável pela morte do próprio filho, mas deixa a filha com um remorso por anos, afundando-se no vício e na depressão.

Quem matou Odete Roitman? Sua ambição.

Bolsonaro brinca que matou Odete Roitman: ''Aquele braço era meu'' | Portal  Leouve - leia. ouça. veja.
Foto: Divulgação, Rede Globo.

Com a sua vida imaculada, livre de um crime porque culpar la sua filha, Odete continua sua caminhada para o sucesso, com a ajuda de Marco Aurélio. Sua ambição faz com que ela reconheça em Fátima, filha de Raquel, a mulher perfeita para Afonso, seu caçula. Fátima, no entanto, não dura no casamento, por ser infiel e manter um relacionamento com César, um vigarista e michê. No decorrer da história, Fátima se aproxima de Marco Aurélio e Odete passa a se relacionar com César. Essa dança das cadeiras afeta Leila, esposa legítima de Marco Aurélio. Leila havia abrigado Fátima na sua própria casa, enquanto era traída, cega de ódio, resolve se vingar de Fátima. Após seguir Marco Aurélio até o apartamento secreto de Odete, Leila atira na primeira pessoa que vê lá, sem saber de quem se tratava.

Dessa forma, a morte que Odete provoca volta para si, numa cadeia que ela prejudica: Helena, Marco Aurélio, Fátima, Leila e termina nela, morta por ação conjunta daqueles que ela buscava controlar, manipular.

Poder: quando é que vale tudo?

O poder aquisitivo e todas a suas mazelas são o motivo da novela. Tudo gira em torno de dinheiro, levar vantagem, quer seja a pessoa rica ou pobre. Vale Tudo é a novela da desonestidade, das coisas que dão certo e errado por causa do dinheiro. O final é bem à brasileira. A pior de todas morre, alguns são presos, o principal vilão, Marco Aurélio, foge do país com uma assassina, dando uma banana para o Brasil, podre de rico.

Vale tudo para sobreviver: correr atrás do prejuízo, vencer de novo na vida, depois do pior dos tombos. Mas vale tudo também passar a perna em todos e ganhar o que se pode, com ou sem privilégios.

Enfim, ainda nada mudou. O ano de 2021 e essa pandemia de COVID-19 tem provado o quanto as coisas voltam ao passado. Vivemos numa economia parecida com 1988, com início de inflação e aumento da fome. Além disso, o poder dos mais ricos é incalculável, como nunca.

A novela termina com algumas esperanças, assim como na nossa vida, algumas luzes piscam no fim do túnel. A arte da telenovela imitou a vida com perfeição em alguns aspectos. Se escrita hoje fosse, provavelmente ampliaria o debate político que chegou a níveis muito agressivos. O brasileiro médio não seria só ambicioso e desonesto. Mas muitos dentre nós seríamos mostrados como ignorantes e intolerantes. A vida é assim. A música de Cazuza da abertura pedia que o país mostrasse sua cara. Corrupta, desleal e mesquinha.

Hoje, além de tudo, uma das suas metades poderia sim ser a da suprema ignorância.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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