O ano é 2019. Uma grande rede de televisão arrota ter cem milhões de telespectadores numa campanha para levantar a própria autoestima. Há anos essa emissora capitaneia a oposição a um determinado partido político no país. Quando o governo foi derrubado, elegeu-se um embuste. Agora esse embuste levantou-se contra essa emissora, que ajudou a limpar o terreno para ele entrar no poder. Foi mais que frustrante. Foi um prejuízo financeiro e moral. Eu imagino o modo como eles chegaram a esse número de telespectadores, depois de analisar dados e fazer estimativas, deve ter sido numa reunião com o alto escalão da empresa, diretores executivos batendo cabeça:
— E aí, a gente tem muito telespectador?
— Num sei, cara, os dados, cadê os dados?
Pega o telefone nervoso e fala baixo, mas espumando ódio:
— Dona Odete, eu pedi os dados na minha mesa há mais de meia hora. Como não chegou, Dona Odete, quer que eu te demita de novo? Não basta a senhora tá de aviso prévio? Não é culpa sua, eu sei, imagino, eu quero agora falar com a Datafolha e com o cara do IBOPE. Não sei, Dona Odete, consegue uma teleconferência agora, não sei, vai a senhora lá a pé e traz isso, eu já pedi, mandei, agora tenho de implorar, Dona Odete?
Enquanto isso liga alguém.
— Pois é, ele tá aqui sim, só um momento.
Passa para o diretor do núcleo de dramaturgia. Ele atende:
— Mãe, eu tô numa reunião, pelo amor de Deus. A senhora não tá de repouso depois da nonagésima plástica nessa cara sua, mãe, como é que eu vou reconhecer a senhor no Natal? A senhora já tá a cara do Pete Burns. Quem é Pete Burns, mãe? Deixa pra lá, eu preciso trabalhar aqui.
(— Ih, pode falar a vontade, os dados ainda não chegaram…)
A mãe surta do outro lado do telefone.
— Mãe, como é que eu vou mandar demitir a Susana Vieira, mãe? Só porque alguém falou que ela falou mal da senhora, como é que pode isso, mãe, vocês nem estão juntas na mesma novela? Aliás, a senhora não trabalha há um tempão e nem a Susana, mãe, eu nem sei se ela tem contrato na emissora, me deixa em paz!
Entra Dona Odete esbaforida com uma papelada na mão dizendo que nos e-mails de todo mundo há uma cópia do material e sai correndo. O diretor que a tem como secretária liga para seu ramal e a chama de novo para demiti-la de novo e dessa vez que ela vá embora e não apareça nunca mais.
Então a reunião começa com todos lendo as cópias dos resumos das pesquisas. Eles precisam fazer uma estimativa de quantos espectadores a emissora tem. Há decisões a serem tomadas, investimentos a serem feitos, há o dinheiro da publicidade do governo federal que a partir desse ano irá para a concorrente, por vingança do presidente eleito, há tanto a pensar…
Mas o que se ouve dentro da sala, nos cinco minutos que se seguem, é um silêncio sepulcral.
O único barulho é o das páginas sendo viradas, o documento grampeado às pressas por Dona Odete de repente vira uma prova de vestibular, difícil, concentrante, causadora de rugas indeléveis nas testas dos homens e mulheres apinhocados ali naquela sala para decidir os rumos da companhia.
— É. Não era isso que eu esperava, dizia um.
— Pois é — responde outro — a gente acredita no IBOPE e dá nisso. Nunca confiei nessa lenda urbana que as televisões têm um aparelhinho que manda um sinal dizendo quem é que tá assistino o quê.
— É por amostragem.
— Tá. Mas mesmo assim.
— E aquelas medição do tempo real que a gente tem acesso na Copa, na final de novela ou no dia em que a gente quer desbancar o Ratinho?
— Só em São Paulo, gente, vocês não fazem a lição de casa não, só a região metropolitana…
— Tá, mas veja bem… Vamo combiná que passamos oito anos tentando fazer o programa de domingo à noite ganhar de Game Of Thrones, isso é meio impossível de qualquer jeito.
— Mas Game of Thrones é só algumas semanas, logo passa. E Deus sabe quando é que vão passar o final. Vamo levantá essa moral, gente. Agora tem Internet, streaming, o pessoal tá assinando para ver novela em qualquer horário…
— Pois é, mas que tiro no pé, né… E o canal de novela repetida? Aliás, a Internet inteira tá prejudicando a gente. As novelas ainda salvam a gente, olha aqui… E esse programa de comentar novela à tarde, manda fechá essa droga e vamo passá Polishop no horário, o povo é viciado em ver propaganda de airfryer e de frigideira sem óleo…
— Tá, mas quem vai indenizar aqueles lá. Porque os anunciantes estão fugindo pela janela, não tá fácil.
Silêncio sepulcral na sala por mais um tempo.
— Já sei — grita um que estava calado — Vamo falar mal do governo no jornalismo e tentar puxar o saco da Lava-jato, vai que eles se voltam contra o presidente… Futebol: vamo continuar jogando sujo e puxando o tapete do povo para televisionar Brasileiro, Libertadores e Copa do Brasil. Vamo ver se a gente dá uma puxada de saco no futebol feminino senão a coisa fica preta pro nosso lado na Internet. Dramaturgia: vamo continua enchendo a Internet de série, chupa Netflix. E manda fechar aquelas afiliadas que não serve pra nada…
Mais um silêncio interminável.
Alguém fala:
— Mas só isso de estimativa de telespectadores. O que vamos fazer?
— Inventar, disse um. Quem é que vai medir?
— Cara, mas… Tá que número a gente põe. Uns vinte milhões?
— Vinte tá bom.
— Vinte, gente… Olha aqui, se somar as visualizações do nosso streaming por mês mais a média do futebol de domingo antes do programa daquele gordo chato, dá… Peraí… Mas é menos…
— Cinquenta então, porque aí a gente justifica que são visualizações de todos os nossos produtos, e se bem que desse jeito, o pau vai cair em riba da nossa costela com o povo falando mal, que a gente inventa número.
— Não, mas tem que ser mais.
Nesse instante, todo mundo para e se entreolha, depois olha para a cara do colega diretor de não sei o quê ali do lado.
— Isso é bobeira, um diz, não tem que esconder ou inventar nada não!
A sala inteira grita, esbraveja, voam ao ar os documentos que custaram o emprego de Dona Odete, secretária executiva bilíngue com mestrado em língua inglesa e mais não sei quantos cursos de qualificação nas costas, enquanto isso um terceirizado entra e começa a limpar a mesinha do café repondo água gelada em garrafas de meio litro, copos de vidro limpos transparentes e cápsulas de café para a máquina esnobe que faz aquele café que espuma e todo mundo bebe e finge que é gostoso.
Obviamente ele ouvira parte da discussão, aliás, o prédio inteiro ouvia, talvez até aos limites do município estava chegando aquela discussão sem sentido.
Sem muita cerimônia ele chama a atenção de todos limpando a garganta, enquanto empurrava o carrinho de servir que trazia.
Todos o olham paralisados, alguns arrumam o penteado e as roupas no corpo.
— Por que não colocam um número bem maior? Por que o medo disso? Acham que o povo vai contar quantas tevê tá ligada na emissora depois disso, quem é que vai se importar? Joga um número alto aí. Qual a população do Brasil atualizada?
Todo mundo olha para ele, todos estupefatos. Ele olha para o chefão:
— Qual a população do Brasil? Eu esqueci…
O cara, por sua vez, hesita olhando para ele de boca aberta meio sem entender, mas entendendo tudo.
Ele aponta seu dedo que sai de um braço que sai de um corpo de uniforme cinza e crachá de empresa terceirizada para uma moça de cabelo fora de moda e óculos de avó.
Ela responde:
— Duzentos milhões, eu acho… É duzentos milhões, né gente, saiu a estimativa do IBGE…
Todos meio que concordam fazendo sinais de afirmação e murmurando urruns e arrãs, a cara do chefe agora era toda uma ruga negativa na testa que, apesar de estar ouvindo aquilo, queria que aquele salário de fome terceirizado que a reforma trabalhista havia dado de presente para a empresa calasse a boca de vez, mas por outro lado, o que ele falava passava a fazer um sentido imenso.
— Então, duzentos milhão de pessoas, olha joga aí uma cem milhão de espectador ou mais. Na verdade cem milhão tá bom, mais que a metade das pessoas do país se ocês põe gente de mais depois o povo não acredita. Quer saber. Faz uma musiquinha chiclete, comemora, põe esse povo da emissora para fazer uma campanhazinha que nem aquela chatice de fim de ano que vocês fazem para todo mundo meter o pau, cem milhões, ora. Por que tinha que ser menos. Outra coisa, se alguém um dia questionar, fala que é juntando todo mundo que assiste aqui, fora do país, tem tanto brasileiro lá fora que se a gente dizer que é cinquenta milhões só nos Estadozunido todo mundo acredita. Comemora, passa a campanha e bota a bola pra frente.
Quando falou a última oração, o fulano já estava empurrando o carrinho em direção à porta, sob palmas e assovios, enquanto o chefe sorridente e alegre começava a dividir aquelas as tarefas que aquela ideia demandava, todo mundo olhando para ele e fazendo o sinal de joinha. Sorridente, ele atravessa a sala para levar o carrinho, enquanto pensa consigo mesmo que finalmente teve a sua chance na vida, que iria ser reconhecido por sua ideia, simples, mas uma boa ideia. Malandragem de pobre que esse povo não sabe do que seja, por isso não sabiam o que fazer.
Meia hora depois a sua coordenadora o chama na sala de controle, ele entra sorrindo, cantando um pagode do Dilsinho, mostrando sua dentuça branca para todo mundo, a coordenadora de cara fechada o demite por ter entrado na sala da chefia, interrompido uma reunião importantíssima fazendo os executivos da empresa perderem tempo ouvindo ideias idiotas sobre coisas que ele não entende.
O cara tentou se explicar, dizendo o que havia sido dito na reunião e a forma impressionante que eles se portaram quando ele disse o que disse. Sem poder fazer nada a não ser seguir a sugestão da empresa que contratava a sua empresa, a coordenadora achando que o cara era louco o demitiu assim mesmo e passou o dia inteiro balançando a cabeça pensando naquela idiotice.
Quando a campanha começou, ela ficou estupefata com o que viu, mas logo pensou que ele pudesse ter ouvido aquilo na reunião e inventado para não perder o emprego e tudo voltou a ser como era antes.
Isso é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é porque a humanidade é tudo um bando de filho da p*ta.
Imagem da capa de StockSnap por Pixabay
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos