UM CORPO QUEER

Juro que começa mais ou menos assim:
Oi, academia, tudo bem? Faz alguns dias que não nos vemos. Como você vai indo?
Eu… bom, eu estou bem. Sim, eu sei que estive ausente. Estava ocupado…
E começo o treino.
Começo sempre tímido, um pouco acanhado, julgando não pertencer àquele espaço. É engraçado. Volto a ser o adolescente encolhido no banco da escola, na aula de educação física, aguardando a vez de ser humilhado pelos meninos — aqueles mais espertos, rápidos, fortes, mais “meninos” do que eu. Aguardava a bola vir em minha direção, esperava que ela me machucasse, acertasse minha cara, me derrubasse no chão — feito um saco de areia.
Subo na esteira e começo a caminhar. Encolho a barriga, estufo o peito, performo uma seriedade. Dou a desculpa a mim mesmo de que tenho pouco tempo para treinar.
Na verdade, eu invento o tempo que tenho, só para não lidar com o tempo que realmente tenho.
No fim, nunca tenho tempo — mas, incrivelmente, sempre arrumo tempo. E a mensalidade da academia está sempre em dia.
Volto à escola. Estou na quadra de educação física. Os meninos jogam futebol. As meninas podem jogar vôlei.
Mas eu não gosto de futebol. Nem de vôlei.
Torço para o professor deixar jogar xadrez. Droga, ele não deixou.
Lembro que invento uma contusão, uma dor de barriga, uma enxaqueca. Fico mais tempo preso no banheiro, só para adiar o tempo da aula.
Logo o professor nem percebe. O foco dele está na quadra, prevendo uma briga entre os times rivais.
Eu sou o estranho. O viadinho que ninguém tem coragem de dizer que sou — ainda não mio muito, não desmunheco muito.
Fico esquecido.
Esqueço que tenho um corpo.
Meu corpo não foi feito para socializar naquele espaço.
Talvez meu corpo nem caiba naquele espaço.
Nem sei se quero pagar o preço para caber naquele espaço.
Estou na esteira novamente. Termino o tempo. Sempre 10 minutos. Sempre cinco quilômetros por hora.
Vejo os outros na esteira. Busco um corpo para comparar com o meu — porque sei que, ao descer para puxar ferro, alguma parte de mim vai se sentir intimidada pelos meninos. Volto a ser menino.
Pego mais peso do que consigo. Isso é minha defesa.
Em minha defesa, sigo o treino. Sigo o roteiro.
Mas não sou como eles, embora deseje ser.
Ou… não desejo?
Quem é que deseja?
Será então que os desejo?
É. Acho que os desejo. Porque eles parecem os caras do pornô.
É, parecem.
Volto a focar no meu treino. Estou indo bem. Estou me convencendo de que posso gostar daquele espaço, daquele código de se vestir e de ser.
Quando estou quase me convencendo, me sinto intimidado de novo — quando vejo os meninos virem próximo a mim, pegarem mais peso que eu, estarem mais definidos que eu.
Que bobeira, penso.
Chego à conclusão de que, na verdade, não preciso de nada daquilo.
Que posso ir além do corpo — que tenho as palavras, os livros, o pensamento, a crítica.
Tenho a crítica foucaultiana sobre o biopoder, sobre o controle dos corpos.
E me convenço de que, se estou ali, é para manter a minha saúde.
A crítica me salva de mim mesmo. Cria uma ponte sobre o abismo da minha angústia.
A crítica me permite perceber que nada daquilo precisa ser um contorno de quem sou.
Mas esse espaço é engraçado.
É sempre de um duplo desejo: o desejo de ser… e o desejo de desejar corpos.
Mas também é de um incômodo — o de não se perceber identificado com nada daquilo.
De também não querer sucumbir a uma pressão estética que não diz… ou melhor, que não condiz com o que espero de mim, da vida, dos corpos, do sexo.
Mentira? Mentira!
Eu gosto de homens musculosos. São viris.
Mas eu os gosto — não os gosto sendo eu.
Mas será que, de fato, eu os gosto?
Ou gosto a partir do que é vendido no pornô?
Então… gosto de um tipo?
O pornô é engraçado.
Nunca é sobre corpos peludos, com barriga, com rugas…
É sempre com corpos desenhados de academia, com marcas de sunga, virilhas claras, ânus rosados.
É. É engraçado.
Mas e os corpos reais?
Não são excitáveis?
Espere… mas esses corpos não são reais?
Só podemos considerar real o corpo-proletário?
O corpo cujo trabalho deixa marcas na pele?
O corpo enformado na forma da linha de produção?
No chão de fábrica? Na mesa do escritório?
O corpo cujo tempo não sobra para fazer dieta?
Esse é o corpo real?
E então fico pensando:
Quantas vezes o meu corpo real já acessou os corpos ideais?
Teve aquela vez na pracinha adormecida…
Sim, teve. Mas ele estava embriagado enquanto me fodia…
É, então não conta.
Teve aquele cara lá da sauna!
É… mas lá estava embaçado…
Mas teve também aquele cara do darkroom.
É… mas também estava escuro.
Nossa, nenhuma dessas experiências foi real com os corpos ideais?
Calma…
Teve real com real. Corpo com corpo.
Ele tinha 1,83m, pele bronzeada, cabelo cacheado.
Não era musculoso.
Tinha até uma barriguinha saliente de cerveja.
Ah… e como esse fodia bem.
Fodia tão gostoso que nunca me fez questionar o lugar do meu corpo.

Foto de capa por Amanda Valverde 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *