Natália Simões |
O ritmo que canta e encanta o gueto.
Da imigração desastrosa à efervescência cultural, o Hip Hop
Na década de 60 eles eram em sua maioria descendentes de escravos libertos, havia também, um punhado de latinos provindos de regiões do México e de Porto Rico. Em admirável coragem, rumaram aos Estados Unidos. Chegaram sofridos e famintos, assustaram os já residentes europeus e judeus, que enfurecidos, buscaram novos caminhos.
Formara-se, então o gueto, lugar de miséria, violência, sujeira e gentalha, tal como imaginava os nova-iorquinos mais abastados. Bairros como Queens, Harlem, Brooklyn e Bronx, para citar alguns, clamavam por misericórdia e ilustravam em traços rústicos o resultado da imigração descontrolada aliada ao descaso econômico da política atuante.
A falta de emprego motivou o jeito vadio de ganhar a vida. Tornava-se figura célebre no bairro aquele capaz de influenciar crianças e jovens ao roubo e ao tráfico de drogas. Enquanto a criminalidade tomava conta da cidade, edifícios, num piscar de olhos, eram destruídos em incêndios intencionais, sendo as crianças principais vítimas dessa desintegração social.
O sociólogo francês Loic Wacquant, explica em sua obra “As duas faces do gueto” (2008), que o simples fato de ir para a escola era considerado um grande risco. Na década de 70 a violência era tamanha, que crianças aprendiam determinadas técnicas de defesa, como por exemplo, se jogar no chão ao ouvir rajadas de tiros e também como se defender de abusos sexuais.
A marginalidade se estendeu com as gangues de Nova Iorque. As gangues eram formadas por meninos, em sua maioria, negros e latinos de visual desgrenhado, uniformizados e devidamente identificados por inscrições em jaquetas. Muitos desses grupos ficaram conhecidos pela atitude agressiva e pelo domínio de território
Os tais de sangue estadunidense trataram de condenar as gangues e excluir essa parcela de imigrantes, que querendo ou não, acabaram por solidificar as raízes culturais trazidas de seu país. Ainda citando Loic Wacquant, houve uma diversidade de formas criativas introduzidas por africanos, jamaicanos e latinos nos guetos.
Essas raízes étnicas culturais somadas à violência e criminalidade fincada nos guetos nova iorquinos, especialmente no Bronx, foram os urgentes motivos que levaram o jovem Kevin Donovan, ou DJ Afrika Bambaataa, ex-líder da gangue Black Spades, a idealizar por meio da música, um incentivo contra o preconceito racial e social. Nascia o RAP.
O Bronx, à altura, com a maior junção étnica em relação aos outros bairros, se transformou num espaço cultural em meados da década de 70, quando, de repente, centenas de trens sujos apareceram cheios de desenhos e frases. Seus autores tornaram-se conhecidos como grafiteiros. Jean Michel Basquiat, Keith Haring, Daze, Dondi e Lee Quinones são alguns dos nomes que fizeram fama.
A junção entre o conhecimento aplicado à música RAP, a disputa entre Mc’s, a dança Breaking e a prática do Grafite consolidaram o estilo de vida Hip Hop. A treta é infinita, afinal, para quem vão os créditos? À Afrika Bambaataa que criou a batida, ou à Kool Herc, que disseminou o ritmo e as festas de ruas pelo Queens?
Para Martha Cooper, fotógrafa que vivenciou os primeiros dias do hip hop, as primeiras batidas do rap vieram de discotecagens produzidas por Bambaataa, grande colecionador de discos. Entretanto, segundo o antropólogo Ted Polhemus, em sua obra “Streetstyle” (1994), quem na verdade liderou os toca-discos foi o jamaicano Kool Herc. Os filósofos Derrick Darby e Tommie Shelby no livro “Hip Hop e a Filosofia” (2006), concordam com Polhemus.
Fora essa rixa, é importante destacar que Bambaataa foi quem uniu elementos de rua e os transformou em elementos do hip hop. Esses elementos não eram somente os elencados acima, mas também, multiculturalismo, sociedade, compaixão, paz, amor, união e respeito pelas raízes, pelos antepassados e por aqueles que inicialmente os rejeitaram.
Pode um ritmo ter a audácia de despertar o interesse da sociedade branca e rica que um dia rejeitou os imigrantes descendentes de escravos libertos? Pode! Além de se tornar um modo de vida com raízes fixadas no direito dos negros e na redução da desigualdade e do preconceito, o hip hop deixou de ser somente um movimento musical e passou a ser um campo de estudo para filósofos e sociólogos.
A mesma visão preconceituosa foi dada à moda, antes vista como superficial e irrelevante por estudiosos que a consideravam um meio de manipulação social do consumo artificial. O comportamento de crianças e jovens imigrantes que legitimavam o estilo hip hop determinaram grandes mudanças nas principais capitais da moda.
Os guetos de Nova Iorque são novamente invadidos por diversos povos, mas dessa vez, os olhares eram de encantamento. A juventude urbana usou de vários códigos entre vestimenta e atitude. Gangues, mafiosos, celebridades do esporte e do cinema foram apenas algumas das inspirações que ajudaram a moldar o estilo hip hop tal como se conhece hoje.
Um estilo só vira moda quando é aceito pela sociedade. Então, a partir da década de 80, pertencer ao hip hop e se vestir a caráter virou moda e inspiração para os mais diversos povos. As customizações e as sobreposições de peças eram muito comuns, mas isso emergia da pobreza, da falta de dinheiro, de disponibilidade e acessibilidade. Em pouco tempo os guerreiros das ruas se tornaram reis e rainhas da customização.
Apesar da falta de condições, os moradores dos guetos pobres de Nova Iorque, através do hip hop e das boas mudanças que a música trouxe, passaram a ter plena consciência de seu valor.
A imigração sofrida passara a valer a pena a partir daquele momento, quando os olhos da sociedade voltaram-se sob eles expressando dignidade e respeito. Por lá, pelas ruas e becos, nem tudo mudou, ainda há o que ser feito, mas o principal eles já conseguiram, serem vistos e admirados.