Foi como atravessar a rua sem olhar para trás,
Sem se despedir,
Foi breve,
Num piscar de olhos,
Muitos conseguem dar tchau antes de atravessar,
Outros só esperam a hora exata de partir.
Alguns têm pressa,
Choram,
Desesperam-se,
Uns se despedem com um beijo longo,
Ou na testa,
Tem gente que o relógio da vida bate lento,
Outros mais depressa.
Algumas tradições penitenciam-se,
Outras fazem festa,
Prestam homenagens póstumas,
Fazem uma prece,
Oferecem um banquete,
Missa,
Um doce,
Ou acendem velas.
As lembranças resumem-se aos encontros,
Numa foto antiga,
Na música preferida,
Na voz,
No abraço,
No cheiro do perfume,
Na beleza de uma flor,
Num áudio esquecido no celular,
No objeto deixado no armário,
Ou uma carta de amor.
Apreciando a lua,
As estrelas,
Lembrando de alguma viagem,
Risada,
Piada sem graça,
Zoeira,
O pôr do sol da janela,
Ouvindo o barulho do mar,
Ou comendo um pastel na feira.
Sempre tive curiosidade sobre a travessia,
Mas tinha pavor de pensar nela,
De todas as incertezas,
Ela é a única que nos espera,
A vida seria muito injusta,
Se não houvesse outras vidas,
Para recebermos os sabores e dissabores que plantamos
Aqui na Terra.
Não existiria diferença entre bom ou mau,
Rico ou pobre,
Saúde e doença
Mérito ou demérito,
Livre arbítrio,
Corpo,
Perispírito,
Espírito,
Pretérito.
Dizem que passa um filme em câmera lenta quando estamos próximos da travessia,
Quem fica guarda os últimos instantes,
Na lápide cravam duas datas distintas,
Da chegada e da partida,
Quando alguém que amamos se vai antes,
Permanece tudo de quem foi,
O coração muda de cor,
Sai o vermelho rubro,
Entra o gris,
Nublou.
Os laços nunca desatam,
Parecemos nus,
Mas não estamos sós,
Eu não tinha ideia,
Por conta da travessia dele,
Na certeza do reencontro,
Quase que instantaneamente,
Curei-me de todo medo que tinha dela,
Da travessia que nos espera,
Enquanto vemos o tempo passar pela janela.