Trabalho e moralidade

O uso do corpo em sociedade tem moral e estética. Dentro da normalidade proposta, a moralidade deve sempre prevalecer. O que me fez pensar mais profundamente sobre isso foi uma suposta polêmica nas redes sociais envolvendo um “produtor de conteúdo adulto”, um ator pornográfico que, recentemente, abdicou da carreira no mundo do entretenimento adulto. Fabuus Junior, como se apresenta em suas redes, é ex-ator pornográfico e ex-acompanhante.

Pretendo começar com uma declaração do próprio ator, quando expôs seus motivos de abandonar a carreira do sexo: ele associava isso ao uso de drogas. Nas suas próprias palavras, ele só fazia sexo em frente a câmeras sob o efeito dessas susbstâncias, nas quais era viciado, mas quando o efeito passava, ele era incapaz de se sentir bem com o que fazia. Portanto, após cinco anos de carreira, ele resolveu abdicar por ter se convertido à religião cristã, tornando-se livre para ter outros sonhos e buscar uma satisfação pessoal e espiritual que o sexo, as drogas e o dinheiro não lhe deram.

Problematizando o uso do corpo para o trabalho, o indivíduo se declarou insatisfeito, vazio, sem sentido mesmo quando podia ter muito prazer com o uso do seu corpo, algo que não é possível em todas atividades laborais moralmente aceitáveis, porque nem todas envolvem exatamente sensações físicas extremamente satisfatórias ou admitem, de certa forma, o uso de drogas recreativas ou de abuso. Ao ajuntar seu vício à sua antiga profissão ele deixa claro uma ausência de distinção muito comum no imaginário coletivo. O sexo, mesmo profissional, nem sempre é encarado como um uso válido e correto do corpo para o trabalho. Ou seja, o trabalho tem uma dimensão moral fortíssima. Não basta trabalhar. O trabalho deve ser edificante e moralizante.

O criador de conteúdo adulto Fabuus Júnior. (Foto: Reprodução) Clique na foto para abrir o vídeo no Instagram

Isso é uma coisa a se refletir. Mesmo profissões moralmente ajustadas podem ser degradantes, adoecedoras e expor a saúde a riscos, algumas trazem sequelas irreversíveis ao bem estar. No entanto, para o ex-ator, o problema em usar drogas e fazer sexo para uma audiência é ser imoral e vazio espiritualmente, é caminha fora do espectro da normalidade e da respeitabilidade. Para suportar esse peso, ele dizia recorrer ao uso de drogas, porque ele se mostrava dividido, ao constatar que seu maior desejo não era o prazer corporal intenso, mas um deleite espiritual que o sexo não lhe dava, pois “Jesus” se encontra fora desse tipo de coisa.

O mais importante disso tudo é localizar esses valores espirituais não como verdadeiros de um ponto de vista absoluto. Mas como algo objetivo, positivo, no sentido de que produzem verdades. Esses valores e crenças, ao se associarem a formas específicas de trabalho, validando algumas e invalidando outras, mostram uma força muito grande na produção de sujeitos autorizados a tudo na sociedade, inclusive à felicidade perene.

Não sei até onde esse rapaz estava de fato envolvido em práticas danosas à sua saúde física e mental, mas claramente ele estava num dilema moral muito forte. O que sabemos, no entanto, por fontes noticiosas, é que o vício em drogas deve ter motivado essa espécie de “mudança”. A associação intencional entre libertação de vícios e a espiritualidade é um dos grandes chamarizes da religião moderna. Ao associar os males do corpo e da mente com crenças transcendentais, os religiosos prometem curas e libertações por meio de austeridade moral. O problema com drogas pode ser caracterizado como problema de saúde física e mental, caso de fato seja um problema. No entanto, a normalidade religiosa também o localiza como problema moral e estético.

Por ser um ator do ramo pornográfico, Fabuus é um homem bonito, cheio de atributos e possui um corpo aparentemente disposto para o trabalho. Os comentários em suas redes sociais, principalmente após sua suposta conversão mostram exatamente essa leitura que se faz do trabalho com sexo numa sociedade moralista. O uso do corpo para o sexo, fora da intimidade pessoal, do privado, dos usos legalizados e normalizados pela moral religiosa, é um uso pródigo. É desperdício do corpo. Ou seja. Fabuus Junior, agora que está “livre” dos grilhões do pecado, do vício, do prazer desmesurado, pode trabalhar, estudar, ou seja, dar um sentido estético, filosófico adequado ao seu corpo.

Na sua análise pessoal, Fabuus culpa a sua ganância, o desejo de “dinheiro fácil” que veio pela prostituição. Na verdade o sexo não é “fácil”. O uso do corpo para o trabalho que ele fazia também envolvia riscos, cansaço, problemas, um verdadeiro desgaste laboral. Outro fator interessante. Apesar de aparentemente “jovem”, Fabuus já estava há mais de cinco anos no ramo. Nesse tipo específico de mercado de trabalho, a novidade é um fator preponderante na escolha de corpos para o trabalho. Mesmo sendo bonito e aparentando jovialidade, ele não é mais novidade há algum tempo. Na última década, a carreira no sexo profissional é marcada pelo empreendedorismo individual. Rapidamente, os estúdios de cinema adulto passaram ao segundo plano. Hoje em dia, produtores independentes de conteúdo, associados ou não, têm relativa independência na criação de seus vídeos e outros materiais. Enquanto isso, as empresas corporativas são responsáveis apenas para fornecer plataformas hospedeiras que atuam distribuindo o conteúdo por meio de assinaturas ou acessos pagos momentâneos. Dessa forma, o ator pornô passa a ter uma vida menos glamourosa. Muitos se associam para dividir recursos e o alcance de seguidores. Mas não é mais obrigatória a colocação de regras e termos específicos em contratos com empresas que garantiam, no passado, um mínimo de empregabilidade.

A impressão que passa um “produtor de conteúdo”, adulto ou não, que sua suposta diversão em frente a uma câmera, passou a render dinheiro do nada, com pouco trabalho e esforço e que os poucos minutos de vídeos ou as poucas fotos que eles disponibilizam em microblogs e redes sociais foram feitas em poucos segundos. Na verdade, tudo é trabalho, tudo ocupa. E com isso, vêm as preocupações do cotidiano: pornográfico ou não, o trabalho tem de dar conta de seus próprios custos e prover o sustento de quem se envolve nele. Nada é diferente para esses novos trabalhadores, uma vez que eles nem sempre têm o suporte de contratos com estúdios que podem arcar com a produção dos vídeos. Tudo na carreira dos novos atores pornôs é colaboração, parceria, permuta e ganhos variáveis. As relações entre eles nem sempre é amistosa, nem sempre é mediada por regras e cláusulas de contratos de trabalho. Sem isso e outras coisas, esse tipo de atividade é voltada para o agora, o presente, não dá “muito futuro”, não garante aposentadoria per se. A aura de pecado e culpa que envolve a produção e o consumo de sexo também atua nesse momento.  Por mais desapegada que uma pessoa seja, ela quer ser prestigiada e respeitada e, até certo ponto, esse tipo de atividade não permite que certos jovens sejam exemplo para outros, orgulho para suas famílias, até porque a ativiadade de Fabuus, por exemplo, parte da prostituição, que o localiza num ponto de imoralidade e abuso estético.

Quanto à saúde do corpo, os vícios e problemas inerentes a uma carreira desgastante são usados como argumentos válidos no caso do mercado do corpo para o sexo. Se Fabuus se declarasse viciado em drogas para suportar o peso de uma jornada 6/1 como carregador de caixas num supermercado ou tivesse problemas de saúde mental por ser professor ou operador de telemarketing, não seria óbvia a associação entre drogas e abuso do corpo por causa do desgaste laboral. Aliás, parece ser justo, doce, moral e até mesmo heroico morrer por um capitalista, por uma empresa, pensando no bem estar da família, filhos. No caso de trabalhos estetica e moralmente ajustados, a cobiça, a sanha por dinheiro não é mal vista. Ao contrário. Há todo um discurso que mostra a necessidade de ir para além do trabalho: esforçar-se, mostrar bravura, desempenho, não ser preguiçoso ou preguiçosa, investir parte do dinheiro ganhado, não se render à necessidade de descanso e lazer, empreender mesmo com pouco, mesmo ganhando pouco.

Mesmo trabalhar com algo de que se gosta é uma ideia moralizante e que traz uma camada de estética para o trabalho. Debaixo desse verniz, estão as necessidades básicas das pessoas. Não importa se é trabalho remunerado por uma empresa. Não importa se é prostituição ou qualquer coisa do mercado do sexo. A moralidade e a estética envolvem uma imbricada rede de cooptação das pessoas pelo capitalismo, para a produção de bens de consumo e lucro. E nesses casos, quem sai mais ganhando não é o trabalhador que está na ponta do sistema. A ilusão de que ganhamos o que é justo também é a mesma de que a pessoa que faz prostituição ou cinema pornô ganha a mais porque é injusto. Na verdade, quem ganha está longe de nossos julgamentos morais e estéticos, por detrás de paredes, portas, documentos, papéis, representados por empregados, defendido por advogados e despersonalizado. Não sabemos a identidade específica do capitalista, daquele que lucra com tudo e tem todo o poder nas mãos, por isso expressamos o que sentimos pelo trabalhador.

No caso de Fabuus, a plataforma que hospeda seu conteúdo pornográfico é a grande beneficiada por seu trabalho. Mas não somente pelo trabalho de uma pessoa, mas por sua possibilidade de agregar milhares, milhões como ele, desenvolvendo um trabalho, a princípio doméstico, depois mais organizado e em colaboração com outros empreendedores do sexo. Sem gastos com trabalhadores, contratos, registros ou ainda mesmo impostos previdenciários, o lucro é certo. Lembrando-se de que o comércio do sexo só existe porque há tabus sexuais que as pessoas querem quebrar. Há usos dos corpos que são compreendidos como indevidos na maior parte do tempo e sua disponibilização para os sujeitos requer um descomprometimento moral e recursos de sobra. Por isso os produtos do mercado sexual valem tanto. Ainda que as mensalidades cobradas sejam baratas, se comparadas com outros prazeres do ramo, o desfrute desse tipo de material concorre com o material gratuito espalhado nas redes, que existe exatamente pelo preço que se tem que pagar, um dinheiro que faz falta a quem não tem muito recurso para sentir prazer como quiser.

O comércio das coisas erradas e imorais é uma das facetas mais interessantes do capitalismo. Homocapitalismo, capitalismo gay, capitalismo arco-íris, neocapitalismo, pink money ou qualquer expressão do capitalismo para absorver e acolher no seu seio as alteridades, são um prolapso do esforço capitalista que sempre existiu (até antes do capitalismo em si) de acolher qualquer oportunidade de lucro. Ao dar opção de consumo para pervertidos, pecadores, imorais, viciados e perdulários em geral, o capitalismo atua como o principal aglutinador desse tipo de subjetividade. Ou seja, aquilo que a moral e a estética impõem como o não-ser, o capitalismo pode transformar em subjetividade porque permite a sua existência por relações de consumo que são muito fortes e significativas. De certa forma, consumir coisas erradas, imorais e viciantes é algo que rivaliza com as necessidades básicas.

Talvez por isso devamos questionar. Para além do capitalismo e da moralidade, o importante é a gente poder entender o que move a humanidade, suas necessidades e a forma como organizamos nossos valores e prioridades. No que tange a pessoas LGBTQIAPN+, suas vontades e desejos, as suas necessidades simbólicas e materiais de consumo também precisam ser problematizadas. Nesse mundo capitalista atual, também importa saber como funciona esse mercado do corpo e do sexo dentro de suas realidades e possibilidades para que a moral e a estética possam dar lugar a outro tipo de visão. A ÉTICA. Isso é o mais importante. Queremos resolver todos os problemas de maneira reducionista, mas nem sempre a solução para o trabalho sexual é exatamente moral. Ela deve ser ética, respeitar os corpos, os desejos e incluir as pessoas com dignidade.

Quanto a Fabuus Junior, ele está em busca da felicidade, da existência como ser dentro de um ambiente cultural e pessoal específico. Talvez ele busque mais do que ser reconhecido pelos seus atributos físicos, sexuais ou pela riqueza material que o sexo pode ter proporcionado. Talvez ele queira isso: respeito. E sua busca transcendental pela sua alma, de fato é uma busca maior, por mais que simplesmente ter. E na sua busca por ser, ele é cooptado por ideias que relocalizam sua identidade e corpo, como é o caso do cristianismo e de outras tradições religiosas  que colaboram de marca direta e clara com a economia do uso dos corpos e prazeres do capitalismo, assim como contribuiu, ao longo da história, com outras formas de organização socioeconômica

Podemos mudar de ideia quanto ao que crer e como conduzir os nossos corpos. No entanto, nenhuma ideia nos salvará do trabalho, do uso do corpo.

E nós, queremos o quê?

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: Imagem de Antonio Cansino por Pixabay

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