Estou há vinte anos trabalhando como professor de escola pública. Tive a oportunidade de atuar em algumas unidades e desempenhar mais de um tipo de função. Era um sonho antigo, de criança, ser professor. Sonho ampliado pelas possibilidades que eu descobri no meio do caminho, conhecendo a seara da Educação. E tenho sido relativamente feliz em minhas descobertas, ainda que eu não seja exatamente rico ou tenha conseguido algum tipo de redenção física ou espiritual com o meu trabalho. Trabalho muito. Gosto do que faço, mas trabalho muito. E por isso, eu ando muito cansado. E olha que cheguei na metade de minha carreira. Esse ano eu completei exatos vinte anos de carreira. Ainda precisarei trabalhar outros vinte para me aposentar propriamente. Preocupa-me como eu chegarei lá, como será a gestão de meu tempo e, principalmente, de meus cansaços.
Dar trinta e duas aulas por semana é uma rotina que eu tenho há anos. São vinte e seis horas e quarenta minutos em sala de aula. Pode até parecer vantajoso, pois eu recebo por quarenta horas. Mas, na verdade, treze horas e vinte minutos que faltam para as quarenta horas, cinco são obrigatoriamente cumpridas na escola e as outras são para as muitas obrigações semanais, como os estudos obrigatórios, atividades laborais livres, aquelas que temos de desenvolver para dar conta de entrar na sala de aula todo dia: ler, produzir, escrever, planejar, replanejar, selecionar materiais, organizá-los. É uma rotina que não pára. Eu tenho 43 anos de vida. Vinte deles, passei trabalhando dentro de escolas e outros ambientes ligados à educação.
O meu corpo, depois de um semestre de intenso trabalho docente, está cansado. Nem sempre consigo me sentar na frente do computador para fazer coisas que não sejam, exatamente, obrigatórias à minha sobrevivência. É o trabalho me chamando para aquilo que é meu destino: usar meu corpo para atividades úteis, que drenam tanto a minha força física, como a minha capacidade para o uso dos prazeres ou ainda, o mais importante, para o uso do meu corpo para a política. No ano anterior ao início de minha carreira, eu era um operário numa usina de açúcar. Operário de mãos suaves, trabalhava no escritório como arquivista. Mas era um trabalhador, desses que ganhavam pouquíssimo. A possibildiade de participar de um partido político me alcançou e eu entrei para os filiados de uma importante legenda, ligada à centro-esquerda de meu país. Então, comecei a trabalhar como professor, meses depois, e nunca mais tive tempo de qualidade para me dedicar ao partido ou qualquer atividade dessa natureza.
Foi uma vida difícil, essa metade de minha carreira. Colhi poucas e boas vitórias, mas minha caminhada é uma sucessão de pequenas derrotas e de muitas tentativas. Algumas totalmente infrutíferas, mas a maioria aparentemente neutra. Eu tenho conseguido, ao longo da minha vida, manter-me trabalhando e de maneira produtiva e positiva. Ultimamente eu tenho conseguido uma meta importante: conviver bem com colegas em ambiente de trabalho, não porque eu ache trabalhar uma “maravilha”, mas por causa da necessidade imensa de ambiente favorável, saúde mental e, principalmente, o mínimo possível de assédio moral em ambiente em que ganhamos o pão.
As questões de saúde física, mental e às resistências à minha orientação sexual, no ambiente de trabalho, têm sido uma constante nesses vinte anos de carreira. Aos vinte e quatro anos, enfrentei agressões verbais e assédio moral no ambiente de trabalho, um acontecimento traumático que eu fiz questão de esconder por mais de uma década das pessoas ao meu redor. Mas eu consegui tirar algo de positivo para a minha vida, naquele momento. Eu decidi me assumir. Comecei um demorado processo de autoaceitação que culminou em importantes decisões. Dois anos após isso tudo, eu já estava morando em outra cidade, vivendo outra vida, fora do armário, feliz e namorando alguém que eu julgava, até aquele momento, ser o amor da minha vida. Por outro lado, cansaço extremo, muito tempo em sala de aula trouxeram-me problemas de saúde diversos.
Antes de começar a minha carreira, eu havia feito um bem-sucedido tratamento de saúde mental. Diagnosticado como bipolar por psiquiatras, passei por um tratamento efetivo que garantiu o sucesso de minha contratação e meu bom desempenho para o trabalho, com a correta manutenção. No entanto, a partir de 2015, comecei a sofrer com episódios sérios de insônia e depressão. Busquei tratamento, mas isso voltou a recorrer em 2018, após uma separação, pelo fim de um relacionamento afetivo de longo termo. Outros episódios de saúde mental voltaram a acontecer mais uma vez em 2021, quando busquei terapia, ajudado por amigos, durante a pandemia. Meu isolamento, principalmente após um diagnóstico de diabetes do tipo 2, fez-me buscar ajuda. Eu tinha uma caminhada de luta contra sérios problemas de saúde que me obrigaram a fazer tratamentos muito sérios de saúde física, agravados pelo sedentarismo e o estresse do trabalho como professor em meses de educação fora de sala de aula.
Imagem de Ray Shrewsberry • por Pixabay
Desde que meu relacionamento terminara, em 2018, a urgência de viver bem foi se marcando na minha existência. Precisei recalcular a minha rota. Eu tinha um caminho que eu precisava trilhar sozinho, depois de quase onze anos dividindo casa, vida e preocupações com outra pessoa que me ocupava em cem porcento do meu tempo. Viver sozinho é um desafio. Viver a dois ou mais também. Nesse contexto todo de adoecimentos, corrida atrás da saúde e a necessidade de ser alguém, de trabalhar com algo que eu gostasse, nesse contexto todo de luta por mim mesmo, o trabalho foi algo extremamente determinante.
A princípio, eu demorei pouquíssimo tempo para entender a armadilha do trabalho. Se conseguimos fazer o que amamos, somos constrangidos a fazê-lo com uma dose de sacrifício que nos corrompe, que nos chantageia. Afinal de contas, é a minha vocação, eu estudei tanto para isso, eu passei num concurso ou processo de seleção etc. Não é somente ir a um lugar e desempenhar uma função mecânica, fordista. O trabalho com educação é extremamente absorvente. Envolve o ser em suas dimensões reais, não é mecânico e repetivo, é emocionalmente exaustivo, porque implica em mexer com desejos, vontades, implica em formar pessoas para uma vida que pode não fazer tanto sentido para elas.
É impossivel ensinar para o futuro de tantas crianças, adolescentes e adultos e não encarar nossos próprios presentes e futuros possíveis. Desejamos tanto o bem daqueles que formamos que podemos nos perder nesse processo. Ao mesmo tempo em que embarcamos numa caminhada de ideias e filosofias, perdemo-nos em atividades laborais exaustivas que nos desafiam a continuar a seguir pensando e refletindo. Não sabemos como equilibrar isso o tempo todo. Às vezes, precisamos dar muita importância à educação. Parece inútil querer que ela determine um futuro melhor para nossos estudantes. Mas, muitas vezes, isso faz todo o sentido. Temos muitos exemplos, pequenos, médios e grandes de como isso funciona, mesmo num mundo totalmente contraditório e cruel com os seres humanos menos favorecidos.
E nesse meio, encaro a mim mesmo. Minha mente ainda pensa, mas ela encontra no meu corpo exausto uma barreira muito grande. Trabalhar é necessário, pois sou todo o dia chantageado a fazê-lo, em nome de minha própria sobrevivência. Ao fazê-lo, impeço-me de ter tempo e disposição para usar qualquer centelha de minhas forças para mobilizar todos para um mundo melhor de maneira mais efetiva. Por outro lado, qualquer mudança que há de acontecer, pelos tempos futuros, dependerá também, em certa parte, de meu trabalho como formiga operária da educação. Não sei se me sinto triste por isso. Ou feliz.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Capa: Imagem de rawpixel por Pixabay
Respostas de 2
Excelente texto para refletirmos sobre a exaustão e pouca remuneração dos professores. Cidadãos sérios e comprometidos com o futuro compreendem o papel dos professores na sociedade. Parabéns!
Obrigado, colega!🫀🫀🫀🫀