Thorn – Aprendiz (Parte 02)

Uns dois minutos depois, uma professora da escolinha do município passa apressada carregando o material que ela está levando para os alunos nas mãos, porém sua bolça solta a alça fazendo com que várias canetas e lápis de cor se esparramassem pela calçada avermelhada. Ela abaixa na hora e avista o saco, aguardando também na calçada, e antes de entrar em desespero, ela sorri e pega o saco para colocar tudo, inclusive a bolsa, dentro do plástico resistente. Val o olha admirada, enquanto os dois veem a professorinha voltar a caminhar feliz em direção ao colégio.

– Vê? Esse é o trabalho de um aprendiz.

Esclarece Thorn com os olhos mareados de felicidade por trazer alegria às pessoas em pequenos momentos de necessidade.

Val, ainda impressionada, observa os olhos de Thorn que brilham demonstrando toda a paz que carrega em sua alma. Então ela lembra das suas obrigações na igreja e se despede dele. Ela caminha apressadamente e entrando na igreja, ela retorna aos seus afazeres. Porém, assim que havia acabado de relacionar as novas doações para a entrega do próximo final de semana, Val procura o Padre Márcio para contar o ocorrido. O padre senta com ela de frente para o altar e diz:

– Saiba que ninguém conversa com as estrelas, apenas os doidos de pedra e acredite, não existem aprendizes de anjo. Deus criou os anjos e os homens, um homem não pode virar um anjo porque é um homem, entendeu?

– “Sim Padre, mas ele disse que sente falta de conversar com outras pessoas porque ninguém enxerga ele e quando veem as pessoas têm medo de falar com ele. O Senhor me ensinou que dar atenção aos necessitados também é uma forma de caridade e eu só quero conversar com ele, Padre.

– Menina, ele é maluco, todos sabem! Pode ser até perigoso ficar ao lado dele, mas se é isso que deseja que seja sempre durante o dia e na praça ou dentro da igreja e nunca, nunca sozinho com ele em um lugar fechado, entendeu?

Val concorda balançando a cabeça e o padre a beija na testa reconhecendo o seu gesto de bondade.

Os dias começam a passar e Val passa a observá-lo, sempre que consegue vê-lo de novo da sacristia. Val o vê sentado na praça, mas quando ele tem certeza que ninguém está olhando, ele anda e coloca um pequeno pião com um cordão perto do chafariz para sair andando. Nesta mesma hora em um grupo de meninos, um é expulso pelos demais por ser novo demais para brincar com os outros. O garoto começa a caminhar de cabeça baixa e quando este está prestes a chorar pela rejeição que sofrera, eis que ele se assusta quando quase pisa no pião e quando o pega do chão a alegria que vivencia é tão grande que Thorn a sente mesmo estando distante e indo para outro lugar.

Em um outro dia, Val o vê sentando no banco da praça e vai ao seu encontro levando uma caneca de café, novamente, ela se senta ao seu lado e eles conversam muito. Acho que é a primeira vez em anos que Thorn ri de alguma besteira e toma um bom cafezinho, feito por ela mesma. Val quer saber mais sobre as estrelas e suas canções, então ela diz:

– Senhor Thorn, as estrelas falam sempre juntas ou apenas uma por vez?

– Somente na primeira vez, apenas uma cantou para mim, depois sempre as ouvi cantarem juntas como um coral, mas não tenho como te explicar, pois é maravilhoso. Nunca ouvi nada igual em minha vida.

– E quando for mesmo a sua hora, elas cantarão para o Senhor? Como o Senhor saberá que a hora chegou?

– Elas me disseram que dois anjos virão me levar e que nesse momento eu verei que toda a minha dedicação valeu a pena, pois a paz que eu trouxe aos outros me será recompensada, mas não foi por isso que eu fiz o que tenho feito, na verdade eu fiz e continuo fazendo o que faço porque somente nestas horas eu posso realmente sentir toda a alegria que há nesta vida. É nessas horas que eu posso me sentir feliz e me sentir em paz!

Val arregala os olhos e respira a alegria que saia de cada uma dessas palavras. Ela se lembra e tira de uma bolsinha que carrega em seus ombros duas fatias de bolo de fubá e as oferece ao Senhor Thorn, que agradece com um olhar molhado de ternura e gratidão. Os dois ainda conversam por uma hora ou um pouco mais para depois se despedirem. Enquanto Val retorna para a igreja e aos seus afazeres, o Senhor Thorn vai em busca de refúgio para se deitar, já que a noite não demora para cair, e poder ouvir a música das estrelas novamente.

Val, inspirada por seu novo amigo, resolve fazer uma oração diferente naquela noite e quando se recolhe aos seus aposentos, ela se ajoelha e pede para que algum parente do Senhor Thorn pudesse ser avisado que ele estaria naquela cidade e pergunta o que ela poderia fazer para poder ajudar um homem esquecido pelo mundo e perdido em Gaudium. Depois ela se deita e fecha os olhos, mas adormece tão rapidamente que a noite passa por ela e vai embora. Então ela acorda para os seus trabalhos matinais. Ao longo do dia, ela olha pela janela e não vê o seu amigo.

Outra noite sem sonhos e mais uma vez Val não consegue ver o Senhor Thorn na praça o dia todo. Desta vez, depois da oração noturna, Val deita e fica olhando o teto ainda sem sono. Quando não pensava em mais nada, o teto do quarto vai soltando pedaço por pedaço que vão subindo aos céus e que, no final, dá lugar a um céu estrelado. Constelações ela podia ver ali, uma música maravilhosa descia para os seus ouvidos e ela começa a chorar de alegria. Quando ela já está em êxtase que as canções lhe traziam, tudo para e ela ouve um canto, uma única voz, singela e que fala com uma paz que ela nunca experimentara antes.

– Amanhã você deve ir ao hospital municipal, quarto trinta e um, exatamente às 15:35. Não se preocupe pois, o seu amigo nunca esteve melhor.

Fim da parte 02