Acabei de ler um livro fascinante: “Circe”, de Madeline Miller. Faz pouco tempo, li um outro livro da autora, “A Canção de Aquiles”, seu primeiro romance, que também adorei. São narrativas que falam de inadequação. Nas duas obras, Madeline Miller retoma histórias bastante conhecidas da mitologia grega, mas apresenta-as da perspectiva de personagens que não são os protagonistas que estamos mais acostumados a ver nesses relatos, como os deuses do Olimpo e os grandes heróis. Tanto Pátroclo, na “Canção de Aquiles”, quanto Circe são naturalmente os protagonistas de suas próprias histórias, mas ocupam lugares relativamente marginais nas grandes epopeias das quais participam. O que me pareceu especialmente interessante foi o fato de, nos dois romances, esses personagens terem uma visão distanciada e crítica do universo de deuses e heróis ao qual pertencem, mas de que, em certa medida, são excluídos, justamente por não partilharem inteiramente dos seus ideais e valores. São cada um do seu jeito inadequados ao mundo que os cerca.
Isso levou-me a refletir sobre a sensação de ser inadequado, muito familiar para mim. Sobre a dor e a delícia de ser o que se é, sabendo que o que se é não é exatamente o que o mundo espera que se seja.
Eu senti-me inadequado desde muito cedo. Não por falta de amor ou de atenção, pois tive a sorte de ter pais e uma família que sempre me proporcionaram um ambiente favorável ao meu crescimento e ao meu desenvolvimento. Todos temos nossas questões com os nossos pais e com o nosso meio de origem, mas não é disso que se trata aqui. Eu diria que era uma sensação mais existencial, embora não tivesse condições de processar isso dessa forma naquela época. Uma espécie de convicção íntima de que, embora pertencendo plenamente àquele meio, eu não cabia inteiramente nele.
Era uma sensação que não se limitava ao ambiente familiar. Também na escola eu me sentia estranho e inadequado. O fato de, aos nove anos, eu ter me mudado de país e ter tido que me adaptar a uma escola e a uma língua então desconhecida, para depois de dois anos e meio voltar ao Brasil e ter que começar tudo de novo numa outra escola contribuíram para acentuar esse sentimento de estranheza e inadequação, que evidentemente se intensificou muito com a chegada da puberdade, da adolescência e a lenta tomada de consciência de minha orientação sexual “divergente”.
E vou confessar uma coisa: até hoje essa sensação me habita. Onde quer que eu vá ou onde quer que eu esteja, por mais que eu me sinta à vontade, sempre há um momento em que baixa um certo desconforto associado ao sentimento de não fazer totalmente parte daquilo. Sempre há uma nota dissonante. Creio que é por isso que a leitura dos livros da Madeline Miller causou uma impressão tão forte em mim. Ou talvez seja por isso que o tema da inadequação tenha surgido com tanta força na minha leitura dos dois romances.
Curiosamente, acabei abraçando uma profissão que me faz estar regularmente em movimento, o que de certa forma me obriga a não me fixar em nenhum ambiente de forma definitiva. Volta e meia, tenho que desarmar minha tenda e ir montá-la em outro lugar, recomeçar o processo de ser um estranho que chega, se instala e algum dia vai embora. E quando volto aos meus pontos de referência mais permanentes, também sinto estranheza, pois cada nova experiência me transforma e já não sou o mesmo que esteve ali da última vez.
Mas o que pode soar mais esquisito ainda é a consciência de que, no fundo, eu gosto de me sentir um estrangeiro. E um inadequado. Com todos os eventuais desconfortos que essa sensação traz. E um pouco por causa deles.
A partir do desabrochar da minha sexualidade durante minha adolescência, comecei a associar minha sensação de inadequação ao fato de ser gay. E acreditei nisso durante muitos anos. Atualmente, essa explicação não me satisfaz ou, pelo menos, não me parece suficiente. Claro que o fato de ser gay é um fator determinante da minha personalidade, embora não a esgote. E é evidente que ser gay numa sociedade heteronormativa me coloca de imediato numa situação de inadequação essencial em relação ao mundo que me cerca. Já falei sobre o peso da certeza de nunca poder atender plenamente às expectativas projetadas sobre mim e interiorizadas durante muito tempo.
Entretanto, para mim, estar num lugar de inadequação permitiu-me olhar o mundo com olhos mais críticos, para além das questões diretamente relacionadas com a sexualidade. É como se eu tivesse me tornado mais sensível para perceber como muitas normas e crenças que parecem naturais para quem está (aparentemente) adequado a determinados ambientes e situações são no fundo construções sociais e culturais: não apenas a orientação sexual, mas também o gênero e as concepções do que seja o masculino e o feminino (e a própria ideia de um binarismo essencial entre masculino e feminino), e os próprios valores que sustentam esse mundo heteronormativo e patriarcal, como a ideia de sucesso, a noção de “vencer na vida”, as muitas formas como se criam hierarquias para diferenciar quem é “superior” de quem é “inferior”, entre muitas outras coisas.
A partir destes questionamentos, aprendi que é possível imaginar outras formas de arranjos sociais, individuais e afetivos, e a construir espaços alternativos de liberdade, mesmo que provisórios, enquanto se trabalha para transformar o mundo. Descobri que, embora a sensação de inadequação continue me acompanhando, sempre se consegue encontrar ou criar refúgios onde posso ser acolhido por inteiro, sem precisar deixar minha inadequação na porta.
Finalmente, fui também me dando conta de que, como diz Caetano Veloso, de perto ninguém é normal, ou seja, todo mundo tem, de modo mais ou menos consciente, com maior ou menor intensidade, uma semente de inadequação dentro de si.
A experiência de sentir-se inadequado pode ser muito dolorosa e solitária. Não há nada de errado em querer pertencer a algo ou a algum lugar. Trata-se de um impulso que me parece natural e legítimo, e creio que ter essa aspiração atendida deveria ser considerada um direito humano fundamental.
Há muitos anos, escrevi um texto sobre a saga cinematográfica dos X-Men. Falava sobre a ideia da mutação como diferença e de como a diferença acontece e emerge no mundo, quer queiramos ou não. Podemos acolhê-la ou rejeitá-la e tentar eliminá-la ou subjugá-la, mas ela continuará a existir. O argumento central do artigo era que, na verdade, somos todos mutantes, e que reconhecer a acolher a mutação em cada um de nós era um primeiro passo para reconhecer e aceitar a mutação nos outros.
Enquanto trabalhava na redação desta coluna, ocorreu-me que, além de mutantes, somos também todos inadequados, ou quem sabe sejamos inadequados porque mutantes. Nesse sentido, o direito à inadequação parece-me tão essencial quanto o direito ao pertencimento. Talvez inclusive a sensação de inadequação, se acolhida e partilhada, contribua para nos tornar mais humanos e solidários, menos presos em nossas tribos e identidades excludentes. Talvez cultivar a centelha da inadequação nos possibilite criar mecanismos para que os sistemas sociais, em suas várias dimensões, não se cristalizem e não desenvolvam seus próprios métodos de opressão e exclusão (que é historicamente o que costuma acontecer com as revoluções de qualquer tipo). Talvez, afinal, a forma mais profunda de pertencimento seja justamente a descoberta e a celebração da nossa inadequação comum.
O inadequado em mim saúda o inadequado em vocês.
Até a próxima!
PS – Escolhi duas músicas que sempre evocam para mim a sensação de inadequação sobre a qual quis escrever hoje: “Sujeito Estranho”, com Ney Matogroso, e “Fool on the Hill”, com os Beatles.
Para ver mais textos de Paulo André Lima, acesse sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais
Entre em nosso grupo de WhatsApp Boletim Pró Diversidade e receba notificações das publicações do site.