Sobre daddies e filhotes

Essa coluna é dedicada aos meus ”filhotes”. Eles sabem quem são.

 A imagem que ilustra essa coluna é do Marco Bym (bym.com.br), a quem agradeço a autorização para utilizá-la.

 

No início de outubro, por conta de uma viagem de trabalho, fiz uma conexão num dos aeroportos de Paris. Aproveitei as poucas horas que tive lá para fazer algo que adoro: explorar uma banca de jornais e revistas. Na verdade, era uma loja de conveniência que tinha um setor legal de livros, jornais e revistas. Dei a sorte de encontrar o livro mais recente do Édouard Louis, que acabara de ser lançado, e também a edição de outono da Tétu, uma revista francesa dirigida ao público gay. A reportagem de capa era sobre Léon Salin, um homem trans que eu não conhecia. Mas o que me chamou mais a atenção foi uma chamada para um artigo sobre relacionamentos amorosos intergeracionais entre homens com uma diferença de idade entre 10 e 30 anos.

Achei a matéria interessante mas de certo modo superficial e insatisfatória. E desde então venho pensando em escrever sobre esse assunto. Tinha mais ou menos decidido que seria o tema desta coluna, mas ainda estava um pouco indeciso e inseguro a respeito, até que, essa semana, um amigo querido, o artista gráfico, ilustrador e quadrinista ByM, postou no seu perfil no BlueSky um quadrinho que falava justamente de um encontro entre um homem mais velho e outro mais novo, e entendi que o tema já tinha me escolhido. Sincronicidade que chama, né?

Como diz o Bym no seu post, as relações intergeracionais costumam ser reduzidas a uma transação material, onde o mais jovem vende o frescor de sua juventude em troca de bens e facilidades. Mesmo reconhecendo que isso pode acontecer – e acontece com certa frequência -, não creio que isso esgote o assunto. Mais do que isso, acho que normalizar essa associação automática do desejo e do amor entre mais velhos e mais novos com uma mera troca de interesses é mais uma manifestação do “etarismo estrutural” das nossas sociedades contemporâneas.

Aos 60 anos, depois de ter vivido por muito tempo num dos polos dessa dinâmica e estando já há alguns anos vivendo no outro polo, sinto-me em situação privilegiada para falar sobre isso.

Antes de começar, não custa deixar claro que estou falando de relações afetivas e sexuais entre pessoas adultas e maduras o suficiente para dar o seu consentimento a qualquer tipo de contato físico. Pedofilia e a exploração sexual de crianças são crimes.

Quando jovem, o meu desejo era principalmente voltado para homens mais velhos. Já falei aqui do impacto que o meu professor de física teve na tomada de consciência da minha orientação sexual e afetiva. E minha primeira vez foi com um cara mais velho, amigo do meu tio. Meus primeiros namorados eram mais velhos do que eu. Pra ser honesto, não me lembro de ter namorado alguém mais novo do que eu até conhecer o meu atual marido, aos 34 anos (ele tinha 30). Lembro da alegria e do alívio que senti quando descobri a boate La Cueva e o Cabaré Casanova no Rio, lugares frequentados por homens mais velhos e, para mim, muito mais interessantes do que a garotada que eu via nas boates da moda.

Em todos esses namoros, a questão material nunca se colocou para mim. Eu era independente financeiramente e não dependia dos meus namorados para nada. Na verdade, em algumas situações era eu inclusive que garantia uma certa estabilidade financeira.

O que eu buscava então?

Parêntesis: é curioso eu me sentir impelido a me perguntar sobre as motivações do meu desejo somente porque ele foge a uma suposta norma. Como se todo desejo “fora do lugar” necessitasse ser explicado. Como se o desejo tivesse um lugar certo. Mas enfim, vamos lá.

O que eu buscava então? Uma figura paterna? É provável que sim, pelo menos em parte. Não que meu pai não tenha me fornecido modelos sólidos. Aliás, quanto mais o tempo passa, mais eu reconheço em mim traços do meu pai. Ressignificados certamente, mas estão aqui.

Apesar disso, seguramente por conta também da minha orientação sexual, mas não só, eu percebo hoje que buscava um modelo de estar no mundo que meu pai não tinha condições de me proporcionar (ou eu acreditava que não naquela época). Em certa medida, encontrei elementos desse modelo no meu tio, irmão caçula do meu pai, mas também de forma incompleta.

Pensando bem, creio que não era bem um modelo que eu buscava. Era, mais simplesmente e também mais profundamente, um tipo de acolhimento sem expectativas nem julgamentos da pessoa esquisita que eu acreditava ser. Que eu era e continuo sendo. Como todo mundo. Alguém que me acolhesse e me dissesse, “tudo bem ser quem você é. Já estive nesse lugar e sei como é.”

Devo dizer que eu encontrei esse acolhimento, muitos anos mais tarde, numa cidade perdida no norte do Canadá. Um encontro breve mas transformador. Quem sabe um dia eu conte os detalhes.

Hoje em dia, não acho que seja suficiente falar disso simplesmente em termos de “busca de uma figura paterna”. Pode ser tão redutor quanto resumir tudo a uma questão de troca material. Talvez estejam em jogo aqui fluxos mais profundos do desejo e do afeto (sorry, Hugo), que alguns chamariam arquetípicos e que vão muito além do triângulo edipiano e suas derivações (saravá, Jung e Deleuze).

Não saberia dizer exatamente em que momento o foco que eu tinha preferencialmente nos mais velhos passou a se dirigir também aos mais novos. A idade contribuiu, com certeza. Mas creio também que a experiência de me sentir integralmente acolhido, que mencionei acima, me trouxe para um lugar onde eu deixei de ser apenas o que busca, mas também o que tem algo a oferecer. O aprendiz que vira professor, sem deixar de continuar a ser um aprendiz (na minha religião, só pode celebrar um ritual quem já foi submetido a ele. O iniciador tem que ter sido um iniciado). Os saberes, as emoções e as sensações se transmitem corpo a corpo, como experiência e experimentação (saravá, Benjamin)

O fato é que, há algum tempo já, venho mantendo contatos imediatos de graus variados com homens mais jovens do que eu. Alguns deles nunca saíram do virtual (até agora). Todos envolvem, em dosagens que variam caso a caso, flerte, desejo, tesão, carinho e afeto. E muitas vezes eu me pego dizendo coisas a esses meninos que eu gostaria que alguém me tivesse dito quando eu tinha a idade deles. Não são exatamente conselhos, embora às vezes até sejam. São, sobretudo, palavras de acolhimento.

Não me incomodo que eles me chamem de papai (acontece) nem de chamá-los de filhotes. Faz parte do jogo. O que conta para mim (e me dei conta disso não faz tanto tempo assim) é que eu sinto que estou fazendo por eles algo que eu mesmo busquei por tanto tempo. E eu gosto dessa sensação. Assim como gosto também de me sentir acolhido por eles.

Acho que nós, homens gays e pessoas queer em geral, precisamos de espaços seguros e de lugares de acolhimento, onde possamos ser aceitos como os seres estranhos e fora da norma que somos (muito embora, como diz Caetano Veloso, de perto ninguém é normal). Esses espaços precisam ser construídos, física e simbolicamente (ontem mesmo li um lindo conto da Natália Borges Polesso sobre isso, chamado “A Velha Asna e as lésnicas de motocicleta”, do novo livro dela, “Condições ideais de navegação para iniciantes”). Depois de ter perdido tantos membros da nossa geração e da que nos antecedeu para a AIDS, talvez caiba a nós que sobrevivemos contribuir para isso.

Ao seu modo, as relações intergeracionais oferecem um modelo possível (não o único, claro, pois não há modelos únicos) que amplia o campo de possibilidades existenciais, afetivas e sexuais. E, na verdade, mesmo que não “sirvam” a nenhum propósito maior, continuam sendo legítimas, pois encarnam e manifestam um jeito de amar. E qualquer maneira de amar vale a pena.

Boas festas a todos e um 2025 repleto de alegrias e prazeres!

Até a próxima!

 

PS –  Na playlist de hoje, vamos de Rent, com Pet Shop Boys, Criança, com Marina Lima, Meu Menino, de Danilo Caymmi e Ana Terra, na gravação de Milton Nascimento e, como bônus natalino, o clip recente de Live to Tell, com Madonna, e Santa Baby, com Eartha Kitt.

 

Respostas de 7

  1. Depois que eu passei dos 40, comecei a me relacionar com homens mais novos, mesmo em encontros fortuitos ou em ligações sem compromisso. Raramente surgia a oportunidade de conhecer alguém da minha idade ou de idade superior à minha, talvez porque haja mesmo, no mundo gay, uma tendência, ainda que não seja a única, para isso: jovens que buscam nos mais velhos algum tipo de acolhimento e compreensão, talvez associando a busca pelo amor e satisfação com necessidades emocionais básicas, negadas pelo núcleo familiar, na constituição desses jovens. Eu também sentia atração por rapazes mais velhos, embora não tenha buscado esse tipo de relação no passado e meu casamento tenha sido com alguém da minha faixa etária. Mas buscamos a paternidade onde ela não está? Fazemos, com isso, um exercício de compensação? Não sei, talvez o ideal seja que tenhamos acesso também a terapia, a ambientes acolhedores, amizades saudáveis. Isso me fez falta a vida inteira. Depois de sair do meu ambiente familiar, acabei me dando mal, ligando-me a pessoas narcisistas, tóxicas. Talvez se eu tivesse buscado alguém mais maduro e emocionalmente mais estável que eu, possivelmente teria mais paz e acolhimento. Mas ao mesmo tempo, temos que separar as coisas. O ideal é nos ligarmos às pessoas por afeto, consideração, desejo e identificação, não por causa de nossas deficiências emocionais. Elas são nosso problema e não de nossos parceiros, não importando nossas idades.

    1. Muito obrigado pela leitura e pelo comentário. Eu concordo contigo, mas creio também que é difícil, senão impossível, evitar algum tipo de projeção em qualquer relacionamento afetivo. Até com o terapeuta rola transferência… O importante é ter ou tentar consciência disso para viver também a coisa real, e não somente a fantasia…

  2. Muito bom seu artigo! Aos 45 me sentia meio assustado qd um homem mais jovem me queria, hoje com 76 acho muito muito natural , a gente eh educado pra achar que qdo envelhecemos tudo acaba, mas não eh assim. Gosto muito de ler o que vc escreve Paulo Lima!!!!

  3. Eu penso que é mais sobre se encontrar do que o “procurar” algo, e, falo de uma posição onde a sociedade não me considera jovem e nem velho – a pior fase etária -, admito.
    Desconsiderando todas as questões abordadas no artigo sobre benesses que possam advir de um relacionamento intergeracional, tenho a sorte de viver um amor tão puro e verdadeiro com um parceiro 40 anos mais velho que eu, do alto dos meus 46 e posso dizer que sim, o amor puro e verdadeiro, confiável e sexualmente maravilhoso pode existir, e sem benefícios ou facilidades, somente pelo valer a pena amar e se sentir amado. Sim, me sentir amado e ser como sou, e mesmo assim, estou exatamente na fase (nunca achei que viveria), de achar interessante homens ligeiramente mais jovens que eu. Sejamos felizes e que consideremos justa toda forma de amor, by Lulu.

    1. Muito obrigado pela leitura e por compatilhar sua experiência e sua perspectiva. Toda experiência é única, e por isso é legal saber como os outros vivem as situações similares às que nós vivemos. Enriquece a nossa própria visão. E que bom que encontrou a felicidade!

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