Assumir-se gay pode não ser fácil. Talvez haja alguém que não concorde com isso. E está tudo bem. Certas experiências, mesmo as que apresentam uma regularidade grande, podem ser diferentes para algumas pessoas. Ainda não encontrei alguém que tenha achado ser fácil assumir-se gay. Eu já encontrei quem não tenha tido necessidade de assumir-se, por se entender ou ser entendido como gay desde cedo. Mas fácil, nunca.
Minha história com a homossexualidade começou muito cedo. Sentir atração por homens é algo que eu sinto desde criança. Claro, eu não posso dizer que eu tenha nascido assim. Mas houve um evento em que tudo começou. Quando eu pude entender o que seja ser gay ou viado. E isso aconteceu quando eu fui para a escola. Eu me lembro de ter sido xingado várias vezes até que, por minha curiosidade e pelo contexto, eu entendi que estava sendo chamado de duas coisas: de mulher e de aberração.
Quando eu tinha sete ou oito anos de idade, um garoto quis “me ensinar” algumas coisas nesse sentido, e propôs um jogo sexual. Três anos mais velho que eu, imagino que ele não teve virilidade para colocar em prática o que desejava, por isso desistiu. No outro dia, eu conversei com seu irmão contando o ocorrido. Achei que era algo normal. Ninguém ainda havia me explicado, feito uma correlação entre ser gay e fazer aquilo. Eu aprendi isso no trauma. Meus vizinhos espalharam para a galera toda que eu era gay. Isso significava ser humilhado, ofendido a cada vez que eles se juntavam na frente da minha casa para brincar, andar de bicicleta.
Eu descobri, aos poucos, que certos jogos sexuais de caráter iniciático, eram comuns entre meninos, principalmente entre os que ficavam o dia inteiro na rua. Eu não era esse tipo de garoto. Minha mãe impunha regras muito claras quanto a estar na rua, hora de voltar e o que fazer. Então eu não tinha todo o tempo do mundo para conviver com eles e provar meu valor, ou mostrar que eu poderia aprender a jogar futebol, soltar pipa ou brigar na rua. De fato, isso tudo me fez alguma falta, porque eu desejava muito ser como eles. Na escola, minha curiosidade sexual só aumentava e minha reputação como garoto só piorava. Nunca vou entender o que faz as pessoas olharem uma criança e entendê-las como algo que se define pela sexualização. Mas talvez seja o fato de que o feminino tenha me definido por um certo tempo. Não que eu quisesse ser mulher, não era meu desejo. Embora eu tenha pensado nisso, por causa de uma paixão juvenil. História para outro dia. Mas eu não queria ser mulher, não tinha desejo de me vestir, de me portar, nada. Mas eu não era do grupo dos garotos da rua. E ainda tinha o testemunho dos vizinhos de que eu havia me portado como uma mulher na brincadeira comigo. Eu não era do grupo dos garotos da escola. Eu não servia para nada, do ponto de vista social.
Isso produziu muito estresse, muito mesmo. Eu tinha medo, pânico de ir à escola. Minha mãe me mudou para outro colégio em 1993. Já estava entrando na adolescência. Nesse novo lugar, tive uns meses de refresco de cobranças a respeito de uma sexualidade que eu nem sabia que tinha. Mas sofri bullying por ser feio, beiçudo. Uma conversa íntima com uma colega, em que eu admitia que um estagiário que estava em nossa sala era bonito, reacendeu os problemas de sexualidade que aparentemente eu deveria ter. Essa suspeição durou enquanto eu não resolvi me assumir. E isso demorou mais de dez anos desses eventos traumáticos na escola.
Mas a escola, lugar de socialização, também é um espaço de opressões e problemas. A suspeição a respeito da minha sexualidade me colocou numa roda de cobranças muito intensas. Eu me refugiei na religião. Primeiro no catolicismo, depois no protestantismo. Isso meio que me blindou de toda uma série de afazeres juvenis: conquistar, beijar uma garota, conviver com outros rapazes. Eu me sentia à vontade para não fazer, simplesmente não curtir a vida normal esperada para um jovem da minha idade. Mas a maioridade trouxe a sensação de se estar livre para ser e fazer. Assim eu comecei uma carreira de sete a oito anos de vida sexual no armário, algo que só acabou quando eu pude, finalmente, me assumir. Por esse ponto de vista, assumir-me foi bom. Livrei-me do jugo da religião, da dependência da opinião dos outros, pude manter uma relação com outra pessoa de modo aberto, eu pude viver. Sendo algo bom ou mal, eu pude viver. Custando o que custasse, seria eu, minha vida, meus problemas. Eu não estava sozinho. Com meu namorado e posteriormente marido, foi mais fácil lutar contra o preconceito. A dois é mais fácil. Não significa que o preconceito acabe, mas significa que as pessoas pensam duas vezes antes de emitir opiniões agressivas, ou mesmo de tentar prejudicar quando veem que o gay não está sozinho, com amigos ou um namorado / cônjuge. Foi a impressão que eu tive por todo o tempo em que estive numa relação estável.
Assumir foi importante para descobrir minha verdade, tirar minhas inibições, construir uma personalidade mais coerente e solidária.
No entanto, nada é como deve ser. Por muitas vezes, a identidade que eu adquiri com meu ato de assumir, no passado, é desconfortável, pesada. Se namorando, talvez embevecido pelo amor, eu achava que estava seguro, sendo solteiro, hoje em dia, sinto-me acuado. De 2007 para 2017 foram dez anos de recrudescimento. O preconceito aumentou. A perseguição aumentou. Mas não é só isso que me faz sentir mal, até porque ainda não me acovardei. Não aceito a identidade gay consumista, capitalista, não solidária, misógina, malquista na sociedade. Embora a luta por direitos iguais seja muito válida, e eu acho que todos devem ter direitos iguais, isso não deve acontecer apenas para gays mais ricos se casarem no papel e ficarem imitando modelos heteronormativos de família, como se isso fosse legal.
Não é legal, na minha simples opinião, quando casais gays querem ter filhos e isso é colocado como propaganda para aceitação da diversidade. Isso não é diversidade, não é assumir. Aliás, é assumir o comportamento heterossexual, adaptado à realidade de duas pessoas do mesmo sexo. Ter filhos não é só adotar e criar duas crianças. É se submeter a um regime de normalidade e moralidade que afasta o gay da transgressão que o criou.
Por isso eu vivia triste no meu casamento, mesmo quando eu me sentia amado e amava. Eu não via sentido transgressor em ser dono de casa, ter marido e ter pessoas o tempo todo dizendo que minha casa era maravilhosa e respeitável. Ou seja, eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens.
Talvez por isso eu não queira mais me casar. Quero ter relações, relacionamentos, todos em regime o mais livre o possível de convenções, porque as convenções nos sufocam, nos prendem e nos afastam da diversidade. Na minha opinião, não há suficiente respeito a gays normatizados, casados, pasteurizados e higienizados. Então não compensa. Se vivermos pensando num modelo de família e realização pessoal baseado na família tradicional cristã, qual o sentido disso? Nossa orientação sexual deixa de ser algo constituinte de nossa forma de ser e existir e vira mais uma opção estética, acessória. Como quando as pessoas não religiosas batizam seus filhos, aquilo é só mais uma possibilidade que a pessoa experimenta dentro de um cardápio de liberdades pessoais que o mundo capitalista entrega em troca da exploração seletiva das pessoas em sociedade.
Não me arrependo de ter me assumido, na época foi a decisão mais certa. Não acho que as pessoas devam deixar de se assumir. Elas têm é de ficar espertas contra as táticas de anulação de suas identidades. Elas têm de ficar espertas contra os laços que a sociedade cria para colocar corpos e sujeitos em determinadas posições. Gays têm de ficar o tempo todo atentos às múltiplas tentativas de uma sociedade arraigadamente cristã e homofóbica de anular a força política dos nossos corpos. Essa perseguição não tem uma cara, não é um político, não é uma empresa, é pulverizada.
Antigamente, a gente era gays, viadinhos. Excluídos de tudo, poderíamos nos organizar e correr atrás do respeito que precisávamos. De fato, um século XX inteiro de lutas mostrou isso. Agora, estamos vivendo momentos de complexidade. Muitos gays, abastados ou não, lutam para ter famílias e se sentirem normalizados, quando, de fato, isso os coloca numa economia de uso dos corpos e prazeres em que cada vez menos as pessoas têm poder político para lutar contra a desigualdade.
O corpo liberto do dispositivo da aliança e da sexualidade em torno da família não se ocupa como o que está sob esse tipo de norma. São corpos mais livres. Não que sejam de pessoas esclarecidas e revolucionárias, não se trata disso. Mas são de pessoas que podem usar o corpo e o tempo com mais prazer. E prazer, para quem é LGBT, como podem perceber pelo meu relato, é muito caro. Caro mesmo.
Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos
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