O que me fez ter vontade de escrever esse texto foi uma postagem de um colega, que eu repliquei, no Facebook, um dia desses, ontem, anteontem, eu acho. Falava de moral cristã, aliás, criticava a moral cristã. Era exatamente esse:
Você não precisa de religião para ter senso moral. Se você não consegue distinguir o certo do errado sem um sistema religioso, então o que te falta é caráter, e não religião.
— O Martelo de Nietzsche (@Wanderson_dutch) June 19, 2019
O comentário de um colega veio a calhar. O nome do perfil que publicou o tweet, “Martelo de Nietzsche” sugere que essa afirmação seja associada totalmente ao pensamento do filósofo alemão. De fato, não. Apenas parte dessa afirmação faz sentido. Para entendermos o que o perfil quis dizer, precisamos retornar a Kant. No seu conceito racional de religião, Kant vê a origem moral das crenças como válidas, não exatamente os motivos místicos e espirituais. Por detrás das narrativas cósmicas ou da prática específica de cada religião, está a moral, o conceito puro da razão que vê os madamentos divinos como deveres que temos de cumprir.
Já Nietzsche vê no homem moral essencialmente a fraqueza, porque a necessidade do imperativo categórico de Kant (o senso e a prevalência do dever) não são obrigatórios. Ao contrário. Nietzsche propõe uma compreensão histórica e genealógica da moral, não a sua existência como algo metafísico e superior a tudo. Nesse ponto, podemos entender essa crítica à religião, nessa postagem, de duas formas.
A primeira delas é uma defesa de uma moral como imperativo categórico kantiano, ou seja, uma moral que vem do dever, de algo que subsiste e sustenta a sociedade em que vivemos, que se manifesta nas formas puras de religião, independente daquilo que a religião histórica nos mostra. Então existe uma moral para além da religião, à qual devemos nos filiar e cumprir seus preceitos. E se estamos procurando isso em religiões tais e tais, talvez não tenhamos estado no lugar certo em nossas vidas.
Portanto, se vemos religiões se corrompendo, devemos buscar a moral máxima, para além delas. Será que ela existe mesmo para além de algo? Outra coisa. Se não há religião, mas ainda há uma moral, um bom-mocismo escravizante pairando sobre supostas regras sociais de convivência e prática seria mesmo interessante esse tipo de moral?
Imagem de Immanuel Kant, estampando um selo de 1974. Domínio Público, Alemanha
Já no pensamento de Nietzsche, a moral tem origens genealógicas e históricas nas relações sociais, os sujeitos têm situacionalidade, como em Kant, mas não dependem de um sistema moral para serem bons. O que torna, por exemplo, os cristãos bons, é o medo da condenação do inferno. Assim como hoje em dia, independente de nossas crenças, o que faz com que queiramos seguir a lei é o medo da condenação, não a conclusão a respeito dos penefícios disso para todos, ou mesmo para o sujeito, individualmente. Vivemos no meio dessa fraqueza, dessa imposição de regras a nos amedrontar. Isso sai do campo da moral religiosa e passa ao campo da moral individual. Temos medo de sermos excluídos de nossos grupos, por isso comportamos de modo a agradar a um consenso em que todos pareçam mais ou menos normais. Temos medo de nos impor a nossos colegas de classe. Temos medo de nos impor a nossa família, temendo sermos excluídos dela. Isso nos agrega a tudo. Mesmo quando rompemos com alguns desses vínculos, outros tantos ainda sobram, portanto, temos ainda o que temer, é essa a origem da moral. Não uma metafísica.
Imagem de Friedrich Nietzsche, sketch de Edvard Munch, retratado em selo alemão do ano 2000. Domínio Público.
Encerro essa reflexão aqui questionando, em boa hora, toda e qualquer forma de pensamento religioso que temos, toda e qualquer tradição filosófica, mística que visa nos conduzir. Ela é uma reprodução da moral de senhor e escravo, como Nietzsche falava?
Ele mostra imperativos categóricos kantianos que devemos seguir, porque existem para além de nós? Pensemos em todas: os cristianismos, o espiritismo kardecista, as doutrinas místicas e filosóficas, o islamismo, as religiões afrobrasileiras, as crenças muitas a que temos acesso ou não. Aonde elas nos conduzem?
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos