Racismos cotidianos

A heráldica da dissimulação da cor

Minha origem é multiétnica, como a de muitos brasileiros. Mas ter uma mãe neta de uma mulher indígena e de um homem pardo, fez-me nascer com pele escura, mesmo que meu pai seja branco de ascendência portuguesa. Eu e minha mãe somos lidos como pretos, assim como um irmão dela e o próprio pai, meu avô. Inclusive esse era o apelido do meu avô. Negão. Por isso, sofremos vários tipos de racismos.

Sua cor extremamente escura, herdada da mãe e do pai fizeram com que o chamássemos carinhosamente de vovô Preto. Era natural, para mim, também que me chamassem de preto, algo que eu ouço desde a minha mais tenra infância. O problema foi quando eu descobri, ainda quando criança, que eu era desprezado em prol de meus dois irmãos brancos. Ou ouvir piadinhas de senzala e escravidão na sala de aula. De fato, a primeira aconteceu quando eu, na década de 1990, fiz piada com um colega negro, amigo. A resposta que eu recebi foi que se a Lei Áurea, escrita a lápis, se apagasse, eu também voltaria ao tronco. Racismos cotidianos. Na escola

Mas devo confessar que o incômodo não passava disso. A maior parte do tempo, apesar de lerem-me como negro em muitas situações, em outras entendiam-me como um mestiço, cuja cor da pele se compensava pelos cabelos lisos ou pelo nariz mais pontudo do que o de outros negros ao meu redor. Também me achavam menos feio do que os negros retintos em média. Até hoje, essa coloração de pele me diferencia nas minhas duas famílias.

Herança cultural

No entanto, na minha cidade, no meu Estado, a cor da pele é motivo de distinção, de nota, de comentário, de discussão, piadas. Mesmo que não leiam as pessoas envolvidas como negras. Até porque a presença de um negro ou negra inibe esse tipo de comentário, para evitar que se confunda opiniões pessoais com ataques de injúria racial, na atualidade. Racismos de herança cultural.

Aliás, as relações de proximidade familiares e amistosas que permitiram toda a injúria que eu ouvia. Enquanto em espaços públicos, a relação com minha cor passava por uma percepção de mim como um pardo (está no meu Certificado de Reservista) ou como um não-branco, quando as pessoas podiam se aproximar, tinham uma certa liberdade, como nos ambientes de trabalho, família ou entre amigos, a minha negritude aparecia.

Pardo sofre racismos

A princípio, eu tentava me desviar desse preconceito contando “a verdade”: sou bisneto de uma índia Tapuia, com um pardo comum mesmo, alguém que não era preto e nem branco, por isso sou apenas “brasileiro”, porque ainda tenho duas avós brancas e um avó metido a branco, etc. Mas hoje eu não estou mais nem aí para isso. Apenas aceito minha cor, as múltiplas possibilidades de leitura que ela possibilita, sem medo ou vergonha.

Privilégio

No entanto tenho que pensar de maneira crítica. Eu tenho uma boa dose de passabilidade. Por me lerem como pardo, como “moreno” ou como alguém que tem uma cor bem “brasileira”, eu acabo por não sofrer toda forma de ofensa ou de restrição que negros sofrem. Não me perseguem em lojas por seguranças (já me visaram por meu visual de pobre que eu tenho, mas nada se compara ao que fazem com pessoas mais escuras, ou de cabelo crespo), não me barraram em locais, jamais me pediram para usar o elevador de serviço.

Nem sequer me confundiram com empregado de algum local. Não tomo baculejo de polícia. Nem me chamam de motorista quando dou carona. Muito menos passo por outras formas de exclusão por ter pele escura num tom mais discriminável, embora a minha vida se marque por uma existência restritiva por ser de classe proletária, cujo acesso a bens econômicos e culturais é pequeno. Também tenho uma existência marcada pela vida interiorana. E a cor da minha pele, a minha identificação com um grupo étnico subalterno fica em último lugar no meu rosário de problemas sociais. Racismos dos outros.

Racismos e estereótipo

Mas isso não deixa de me encaixar no estereótipo da pessoa de pele escura, multiétnica e de origem pobre. Pardos e pretos são mais de 50% da população brasileira e sua origem, a minha história como pessoa é o parâmetro pelo qual eu procuro o meu lugar, o meu espaço nessa complexidade. Desse modo, eu evito tentar falar de mim mesmo a partir de um ponto de vista colonizado ou embranquecido.

Isso é muito importante. Os racismos que pessoas pretas sofrem é real e segue padrões culturais de exclusão, embora possa determinar experiências pessoais diversas. Isso leva a acreditar que se deva incluir uma atenção personalizada em qualquer forma de lidar com os racismos, a injúria racial, o racismo estrutural (que se expressa na dinâmica socioeconômica e cultural do país) ou qualquer tipo de preconceito dessa origem.

Deixa o preto falar

A vítima de racismo precisa ser ouvida. Para além de ser atendida, assistida, além do apoio moral ou legal, há a necessidade de entender de que formas essas experiências a constituem como pessoas. A mais branca das posturas é o silenciamento de vítimas no momento da ajuda, sob a justificativa de que não adianta ficar falando tanto. Que é melhor que algo seja feito.

Ouvir e dar voz já é algo. Quanto mais se fala, se ouve, se denuncia, se mostra as estratégias de ataque do discurso racista, quanto mais as pessoas que sofrem esse ataque podem ser ouvidas e mostradas de maneira justa e nada perniciosa, menos normal o racismo se torna. Pessoas que não se entendem como pretas sempre tendem a julgar a vítima do racismo. Ou não as entender. Isso notoriamente tem diminuído, à medida em que se falar sobre racismo não é mais um tabu.

Sofrer racismo é uma fonte de traumas, incompreensões, reforça a exploração, a submissão de pessoas, mas é algo que se impõe como uma verdade social muito forte no psiquismo das pessoas, e isso precisa, também, ser curado. Quem deve falar, ser ouvida é a vítima, num momento desses. E só essa pessoa pode decidir se é importante se calar sobre isso, os motivos de se fazer tal coisa e quando.

Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos

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Respostas de 7

  1. Alex, quanto sujeito branco seu texto me chega como uma oportunidade incrível de rever o recorte social que faço parte e como posso contribuir para uma sociedade cada vez mais antiracista.

  2. Amigo parabéns pela abordagem lúcida de um tema sensível, e que precisa ser mais discutido em nossa sociedade.

  3. Meu amigo. Texto direto, sensível e baseado na sua vivência, pois quem pode falar melhor do limiar da dor é, quem está sentindo a dor. Cabe a quem não sente aquela dor, lutar para outras pessoas não sinta aquela dor. Cabe lutar contra quem provoca a dor, mesmo que para isso, você tenha que cortar a pele da sua alma. Beijos meu lindo.

    1. Há dores maiores que as nossas. Eu espero que todas possam ser saradas. Mas realmente, eu falo do que eu senti, de algo que me marcou até os ossos. Obrigado por sua opinião, lindo.

  4. Que texto brilhante! Concordo por demais que o racismo precisa vir à tona no debate porque ele, infelizmente, faz parte do nosso cotidiano. Quem é contra isso deseja sempre o silêncio, especialmente o silêncio de quem sofre a injúria racial. É uma luta diária, sofrida, mas que precisa acontecer.

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