Racismo e Necropoder

Foto com criança negra que foi trazida da África para a Bélgica e lá colocada em um zoológico humano para o entretenimento da população (1950). Na foto a criança aparece vestida com roupas europeias, dentro de um cercado e alimentada pelos visitantes como se faz nos circos. #pracegover

Para o filósofo camaronês Achille Mbembe, nos países que foram colônias europeias, a violência e a morte são forças maiores e mais importantes que o cuidado com a vida na condução da política. Ou seja, os poderes, mesmo quando aparecem “civilizados” e organizados por leis e poderes racionais, de fato trabalham com a irracionalidade de uma gestão cruel da morte. Em oposição ao biopoder, conceito do filósofo francês Michel Foucault que fala do poder sobre a vida, há o necropoder. Em oposição à política da vida, a biopolítica, há a necropolítica. Nascidos no seio da colonização, esses conceitos falam sobre MORTE.

Não é difícil se entender essa coisa toda. Vamos pensar em nações europeias, Portugal, que nos colonizou por mais de trezentos anos. Ao descobrir o Brasil, os portugueses estavam sob uma monarquia absolutista. Havia um rei cujo domínio sobre seus súditos era divino. Era um poder de fazer morrer e deixar viver. Mas aplicado com uma razão divina, motivo pelo qual havia um consórcio entre o estado e a religião. Os súditos eram submetidos a disciplinas que regiam o uso dos corpos e prazeres. Nos séculos seguintes, notoriamente após o século dezoito, o estado passou a funcionar sob princípios políticos pautados nas ciências, principalmente na medicina social e na economia política. Monarquias e repúblicas europeias passaram a ser “estados modernos”, cuja característica principal era o cuidado com a vida, exercendo poder de fazer viver e deixar morrer sobre os cidadãos. Para que as atividades econômicas, quaisquer que fossem elas, pudessem ser desenvolvidas de maneira correta, o governo deveria garantir saúde pública, educação e gerir a economia. Claro que isso nunca aconteceu em níveis ideais, mas mostrava claramente a intenção de se ter um governo baseado numa razão política, filosófica, científica.

Isso na Europa. Na colônia, reinava o caos e a violência. Mesmo numa colônia antiga, pioneira, como era o caso do Brasil, não havia a intenção clara de reproduzir a legalidade e racionalidade de qualquer tipo de governo europeu moderno, seja absolutista ou iluminista. A Colônia vivia na ilegalidade. E isso só faz sentido se a gente entender que o motivo de não querer nem sequer governar a colônia é um só. Racismo. Na colônia, índios, africanos ou os degredados e condenados europeus que vieram para cá forçadamente, todos esses não eram nem sequer humanos. Somente o chefe da capitania hereditária, o dono de minas, ou de engenho que possuía cidadania. Mas aqui, ele viveria como uma espécie de deus que tinha poderes mais que absolutos sobre a vida dos que eram submetidos ao regime colonial. Por isso que o genocídio indígena aconteceu. Por isso os trezentos e cinquenta anos de exploração de africanos. Nesse regime de ilegalidade e total selvageria, o poder que reinava era o de FAZER MORRER. A morte é o principal valor do universo colonial. Porque não se pode entender os abusos cometidos pela escravidão, genocídio indígena e a institucionalização da pobreza nas colônias como um sistema falho de uso da vida. Mas como uma tecnologia do uso da morte. De fato, a arte de matar com fins políticos é amplamente usada na Europa desde a sempre. O “estado” é isso, dominar-se a vida pela sua supressão. Essa é, claramente, a teoria política da guerra. O domínio da morte para fins de preservação da vida. O nobre filósofo africano mostra com muita verdade que o poder sobre a vida (fazer viver) surge da racionalização da morte, da sua contenção e de seus usos políticos. A diferença é que na metrópole, isso variava em tons mais suaves de violência, contenção, interdição, proibições. Na colônia, isso era morte.

E o racismo estava como força motriz da empreitada colonial. Os escravizados, colonizados, povos originais da África eram menos que humanos. Sua morte, o uso das suas vidas como combustível de uma máquina colonial, se justificava por isso. Matar se justifica para salvar a vida. O racismo é uma extensão desse direito, no pensamento europeu. Mesmo hoje em dia. O racismo nasce da ideia de que considerar pessoas de outro local, outro país, outra região como seus inimigos naturais é uma forma de manter funcionando uma sociedade mais elevada do que a deles. Diferenças linguísticas, cor de pele, diferenças religiosas sempre foram motivos para o racismo. A diferença entre o habitante da metrópole e o da colônia era uma relação de racismo. E várias relações de diferença entre os seres humanos têm relação direta com essas coisas: morte, racismo, ideia de superioridade que legaliza o matar pelo bem de um todos em que o que morre não está incluído.

A essa altura, creio que você já pensou na injúria racial, nas desigualdades sociais aberrantes, no preconceito contra a mulher ou mesmo no tratamento que pobres recebem das autoridades no nosso país. Eles são herdeiros da colonização, que separava quem merecia viver e quem merecia morrer para que outros vivam. É inevitável pensar também na pandemia de Coronavírus e na forma como os nossos poderes contornam, sem resolver, suas obrigações com a saúde do povo. É porque eles estão gerindo a morte.

A demora em se erradicar as atitudes e crimes racistas com leis severas, o jogo que se faz relativizando o dano histórico irreparável da escravidão é uma forma que nosso estado necropolítico tem de apostar na morte dessas pessoas, a curto, médio e longo prazo. Negros formam a grande maioria da classe de pessoas que mais rápido morre no nosso país, por ser a classe mais pobre.

A falta de vontade ou o boicote direto aos direitos LGBTQIA+ no nosso país é uma atitude necropolítica. O Brasil é um dos países que mais matam essas pessoas, notoriamente as pessoas trans, que em sua grande maioria, vivem em situações de anticidadania, como os habitantes da colônia, cujos corpos poderiam morrer, na verdade, eram dados para morrer.

A forma como pobres vivem no Brasil mostra bem que somos filhos da colônia. Brancos, pretos ou pardos, muitos pobres são escolhidos para morrer todo dia por viverem em condições muito piores que uma burguesia mais abastada. Essa burguesia toma o papel do colonizador, é ela que faz questão de manter laços com o norte europeu e norte-americano. A pobreza é filha da burguesia. Neta do colonialismo. E o colonialismo é baseado no racismo, na noção de que há seres humanos inferiores e é justo, legal, natural matá-los para fins de sobrevivência. Precisamos superar isso na prática, no nosso cotidiano. Toda e qualquer luta contra o racismo e as desigualdades sociais não pode prescindir dessa consciência. Da superação de nosso passado colonial. Não pela negação dele, mas pela sua compreensão.

Portanto, desconfie de qualquer proposta de ação social que não queira discutir profundamente nossa condição frente a um sistema de valores que herdamos. Precisamos sim, entender a nossa história colonial, e isso não se faz ensinando fábulas, idolatrando assassinos ou valorizando quem veio de fora. Precisamos, de outra maneira, compreender que as relações humanas melhorarão com mulheres, negros, LGBTQIA+ ou pessoas em estado de extrema pobreza e exclusão assim que desnaturalizarmos a ideia de heterossexuais brancos estão no topo. Não dá para falar de cultura brasileira com quem arrota grandeza por um sobrenome europeu, ou por um tataravô que veio de qualquer país de língua germânica. A nossa condição de inferioridade com relação a Europa é uma ficção deles. Não precisa ser nossa.

Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos

Entre em nosso grupo de WhatsApp Boletim Pró Diversidade e receba notificações das publicações do site.

Respostas de 3

  1. Meu amigo Alex, seu texto é lúcido, provocativo e contemporâneo, pois toca nas profundezas das nossas relações sociais, trazendo algo estruturante que insistimos em não discutir: o racismo. Como homem do seu tempo, que tem na sua ancestralidade os elementos para refletir sobre as relações humanas de ontem e de hoje, nos faz pensar na formação de nossa nação. Uma nação que insiste em desclassificar pessoas humanas, pela cor de sua pele e lugar que ocupa nesta sociedade. Parabéns meu lindo. Vou divulgar seu texto.

  2. Interessante que os EUA se libertaram da colonização européia,digo inglesa,porém desde muito tempo atrás vêm tentando e conseguindo colonizar povos que julgam inferiores.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *