— Então, você comprou Fluido Ibasa? É a mesma coisa que Calminex, que Gelol. No fundo, é tudo salicilato de metila. Analgésico e anti-inflamatório…
Eu disse isso manipulando o frasco. Enquanto isso, minha tia dizia para mim:
— Então, eu gosto porque relaxa muito e sara as dores do corpo rapidamente…
— Tem aquela também, a Pomada Negra, Pomada Preta. Tem a Canela de Velho, também.
— Então, é tudo fitoterápico…
— De fato, mas salicilato de metila é remédio alopático. Corta a dor e desinflama. O segredo do fitoterápico, nesse caso aqui, é ter algo que funcione. Senão não conseguiria vender bem. E como vendem essas pomadas e fluidos.
— É verdade, funciona mesmo. Ontem mesmo eu estava com uma dor aqui, ó…
— Meu pai também não fica sem por causa do desgaste no joelho. Sempre que a Clarinha machuca lá em casa, ele passa essa pomada, uma verdadeira panaceia — disse rindo.
— Pois é, mas qual seu pai usa de fato?
— Pomada preta, pomada negra, sei lá. O nome é assim. Mas eu não sei exatamente. O frasco é todo preto…
— Você sabia que não se pode mais falar “pomada preta” né?
— Acuma?
— Isso mesmo, não pode. É considerado preconceito.
Nesse momento eu perdi tudo, ri, depois fiquei sem-graça, e depois de alguns segundos de boca semiaberta, eu olhei de novo, sacudindo a cabeça:
— Como assim, não pode?
— É, porque as pessoas dizem que é preconceito… A gente não pode nem mais falar essa palavra que dá problema…
— Pode sim, quem te disse isso está errado. Primeiro porque estamos falando de uma pomada, um medicamento, uma substância. Não tem problema algum em dizer sua cor. Preta, negra, não estamos falando exatamente de gente.
Daí entra meu tio de sola:
— Mas as pessoas hoje em dia estão cheias de mimimi. Ninguém pode falar mais nada. Quando eu era criança, as coisas não eram assim.
— Mas não tem esse negócio de não poder dizer que algo seja preto, gente. Um carro preto, sapato preto, que bobeira, isso não faz o menor sentido…
Daí, entra outra tia minha, que vinha de rodear a Terra e andar por ela:
— Tem isso sim, inclusive…
E já ia dizendo algo que eu não consegui terminar de ouvir, já que um barulho chiado, como a estática de rádio, enchia a minha cabeça, e se transformava lentamente num apito agudo de milhares de Hertz, tudo isso por causa de meu ódio por aquele tipo de estultice.
— Gente, não! — eu falei de modo mais alto que o normal — Isso não faz sentido.
Olhei desolado ali para os três e continuei:
— Eu sei do que estou falando porque eu sou uma pessoa de cor. Olha a minha pele. É escura. Sendo eu afro-americano ou não, eu sou uma pessoa de cor.
Minha tia:
— Eu também tenho cor, disse mostrando sua pele morena bem clara…
— Eu também, branco é cor, disse meu tio…
Eu, sem um pingo de paciência, a essa altura do campeonato, desandei a falar que isso era um desrespeito com a história do país e das pessoas negras. Respondi de maneira incisiva ao meu tio que insistia em dizer que antigamente não havia nada disso. Disse que havia sim, sempre houve preconceito e discriminação, ao contrário, antigamente era pior, porque uma pessoa sofria discriminação e preconceito e não poderia dizer que estava magoada com aquilo, nem era levada a sério, e muitas vezes era duramente silenciada quando tentava opinar de modo diferente.
Mas uma das minhas tias, desesperada em parar a conversa, dizia que, de verdade, não poderíamos mais falar aquilo. As pessoas estavam sendo censuradas por uma espécie de grupo organizado. Eu fiquei embasbacado com aquilo e minha boca abriu, e foi abrindo com a insistência deles naquele assunto ridículo, por fim, eu tive de pegar minha mandíbula no chão.
Todos criam piamente numa real existência de uma agência secreta contra o politicamente incorreto. Aquilo era demais para mim. Resolvi ir embora. Já ia me despedindo quando, de repente, um barulho ensurdecedor encheu os céus. Minha tia correu a tapar os ouvidos de vovó, que chorava sem entender nada, aturdida com aquele ruído. Olhei para o muro e duas cordas pendiam dele, olhei para cima, procurando a origem das cordas e fiquei pasmo, sem crer: um helicóptero pairava no ar, fazendo descer quatro pessoas. Uma delas era uma mulher negra, de tranças marrom, mas vestida de roupa militar. Saiu do rapel e veio ao nosso encontro, de mão em riste, aberta, a palma virada para nós, como a Lumena no Big Brother Brasil vinte e um, trotando e dando um grito surpreendente: “RACISTAS NÃO PASSARÃO!”
Meu tio, apesar de assustado, recobrou a calma e a ironia. Sentou-se, cruzou as pernas e apontou para mim:
— O racista aqui é ele.
Minha tia, em pânico o censurou, a essa altura, minha avó estava sendo levada para dentro, quando pediram para que todos ficassem.
A tal ponto, já estavam dentro da área de serviço da casa de vovó: dois soldados fortemente armados, a tal mulher e, por fim, um homem em trajes militares, mas com cara de doente, que era tratado por doutor, pela mulher.
Era um doutor em sociolinguística. Ele estava ali para analisar os dizeres que alertaram a todos. Meu tio:
— Eles ouvem tudo, do microfone do celular, até mesmo daquela “Alexa” que seu irmão comprou e trouxe para cá, outro dia…
Eu via aquilo tudo tão estupefato, tão incrédulo, que eu parecia anestesiado.
A perplexidade persistia, apesar do desenrolar da cena. O helicóptero havia subido, mas as pessoas ali começaram a fazer um inquérito, começando pelos mais brancos, até chegar a mim. Eu, sem entender nada, achei que aquilo se tratava de uma encenação, tipo uma pegadinha daquelas que a gente via na TV.
Por fim, meu tio narrou mais ou menos o que eu havia dito, o que eles haviam dito, eximindo-se e a todos ali (menos eu) de alguma culpa em dizer algo errado.
Minha tia, a mais branquinha de todas, vendo aquelas armas e morrendo de medo de tiro (era bancária e tinha pânico de assalto), afirmou veementemente que tentou me alertar para as proibições linguísticas desse tempo em que vivemos.
Eu, quando interpelado, estava tão anestesiado, que falei como se fala com qualquer um, sem um mínimo de reverência:
— Vocês primeiro me expliquem o que está acontecendo. Eu dormi ontem e acordei num mundo de absurdos, de polícia linguística. Estão falando em nome do governo?
Nesse momento a mulher rompeu em risada, e então disse:
— Governo? Não pactuamos com governos capitalistas, genocidas e com a política assassina, machista, racista, fascista do executivo, legislativo e judiciário. Somos heróis de uma causa que luta pela verdade.
— E que verdade?
Nesse momento o tempo fechou. A mulher passou meia hora batendo boca sozinha, explicando milhares de teorias e práticas que justificam uma ação semiterrorista contra o racismo. Eu achei aquilo um delírio, fiquei a perguntar por que não agiam pelos meios legais, mas a resposta era óbvia. Como que um país burguês e capitalista possui meios legais que não sejam em prol do capitalismo e da burguesia? E ao dizer isso ela acrescentou orgulhosa:
— Agora é a hora de nós, do sistema de cotas darmos nosso troco em quem nos humilhava, no passado e ainda nos humilha no presente.
Dito isso, um laptop preto, equipamento militar, robusto, foi colocado em cima da mesa. Tocaram áudios da nossa conversa anterior. Por fim, a moça se virou para mim e disse: pela análise do timbre vocal que estamos fazendo desde que chegamos aqui, você é o autor desse discurso, liberando o uso da palavra “preta”, dentro de contextos não racistas. Quem é você mesmo? Não precisa dizer.
Virando o computador para mim, vi minha foto, como na carteira de motorista, todos os meus dados, movimentações bancárias, dívidas, tudo sobre mim ali, naquela tela. Inclusive a minha designação de “pardo”, dada quando eu fiz o alistamento militar, em 1999. Então ela tirou do bolso uma espécie de trena, pequenina. Puxou a sua fita, como se fosse me medir. Então eu vi que a fita era curta e tinha uma escala de cores de pele humana.
Ela disse então:
— Por sorte, o senhor é uma pessoa de cor. Pelo que podemos ver aqui, por sua ficha, seu histórico bancário que, além de tudo, é pobre e proletário. Tem lugar de fala para dizer preto, preta, negro, negra, prete, negre, em qualquer contexto ou gênero que deseje. Mas aviso ao senhor que seu comportamento é abusivo, porque quer legislar sobre o que pode ou não ser dito. Além disso, o senhor está perdendo seu tempo tentando explicar para as pessoas erradas como elas devem agir. Contra elas, a lei. Caso seja flagrado novamente, jogando pérolas aos porcos, ou batendo palma para maluco dançar, não terei tanta clemência.
Eu ri alto depois de tantas sandices. Ouvi como resposta os cliques-claques das armas dos soldados, engatilhando-as e apontando-as para mim. Eu fiquei assustado. Olhei para todos, minhas tias em pânico, vovó chorava sem parar e meu tio ria entredentes daquilo.
Por fim, ela avançou para cima de mim e me deu um murro no estômago, deixando-me sem ar, no chão, enquanto minhas tias gritavam e pediam misericórdia. Eu me levantei enquanto ela me passava de novo o mesmo sabão. De pé, eu olhei para aquilo sem entender nada. Ela disse que não me puniria mais, mas deixaria um recado do qual eu não me esqueceria. Virando as costas, ela disse algo num rádio acoplado ao uniforme e saiu pela porta da frente. Os soldados, imóveis, agiram quando um sinal sonoro foi dado nos seus rádios, ao mesmo tempo. Metralharam todos na casa, menos eu. Nem o gato escapou.
Atônito e em pânico, eu nem sabia o que fazer, uma poça de sangue enorme ao meu redor, minha avó morta no sofá, os outros caídos. Olhei para fora e as cordas desceram novamente, sob o som do helicóptero, içando todos e os levando dali.
Nenhum vizinho, ninguém pareceu ouvir ou reagir àquilo. Só podia ser mentira. Então eu gritei alto, desesperado, por fim despertei de um cochilo, sentado numa cadeira dura na mesa grande da casa de minha avó. Olhei meio tonto, uma das minhas tias estava ali. Era um sonho daqueles que a gente tem, depois de cochilar sentado, após o almoço.
De repente, chega minha outra tia e meu tio de carro, entram na garagem, saem do veículo com sacolas de compras. Meu tio deposita o frasco de Fluido Ibasa na mesa, a mesma cena começa a se repetir. Eu pego aquilo e fico olhando sem falar uma palavra. Minha tia: “É um santo remédio, que nem aquela Pomada Negra”.
Eu olhei para ela e assenti com a cabeça e soltei, quase sem sentir:
— Conheço a “Pomada Preta”. Quando percebi o ato falho, era tarde para engolir as palavras. Minha tia:
— Sabia que não se pode mais falar “Pomada Preta?”
Eu a fuzilei com sangue nos olhos de tal maneira e já fui logo pisando no pescoço:
— Pelamordedeus, aqui todo mundo fez o Ensino Fundamental! Vamos parar de besteira!
Ela passou de um lado para outro atônita, eu saí e olhei o céu, ainda impressionado com o pesadelo. Queria ir embora. Foi o que eu fiz, despedindo-me rapidamente de todos, ainda sob certo pânico do sonho ruim daquele cochilo fora de hora.
MENDES, A. Prosa insólita (contos). Goiânia: Kelps, 2023. p. 29-37
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Capa: Imagem de Pexels por Pixabay