POR QUE NÓS, GAYS, PREFERIMOS AS VILÃS?

Não precisamos de uma tese academicamente estruturada para constatar que nós, gays, preferimos as vilãs às princesas. Gostamos da estética vilanesca — das roupas exuberantes, da risada debochada, da riqueza ostentada e, principalmente, daquele olhar de quem perdeu a inocência ao encarar um mundo marcado pela corrupção.

Será que essa identificação tem a ver com a forma como lidamos conosco mesmos ao longo da difícil travessia rumo à saída do armário?

Acredito que sim. Acredito também que as princesas nunca foram capazes de nos oferecer a complexidade de ser e habitar um mundo no qual simplesmente não nos encaixamos. As princesas simbolizam tudo aquilo que deu certo no final: são o sintoma de que a vida é justa, boa, e de que alguém virá nos resgatar e redimir. Uma narrativa que, sejamos honestos, não condiz com a realidade de ser gay. Porque, não importa o quanto sejamos bons, éticos ou justos, sempre haverá alguém pronto para nos dizer que nossas vidas estão erradas.

Essa marca simbólica está presente, inclusive, nos filmes da Disney e nos desenhos animados. Já reparou? Não se trata apenas de uma estética: há uma aparência nitidamente drag queen na madrasta da Branca de Neve (Disney, 1937). Úrsula, a vilã de A Pequena Sereia (1989), foi inspirada em Divine, anti-heroína do clássico Pink Flamingos (1972). Scar, de O Rei Leão (1994), carrega trejeitos e traços afeminados e sarcásticos, quase como um Clodovil felino. A lista poderia se estender por muitos outros nomes.

É preciso considerar, nesse recorte, que muitas produções cinematográficas historicamente retrataram personagens LGBT como psicopatas, vilões ambíguos, ou figuras moralmente dúbias. O herói nos quadrinhos, por exemplo, é quase sempre o símbolo da solidez de gênero, enquanto os vilões carregam uma estética queer, afeminada ou dissidente. E o que isso nos comunica? Claro que há aí a velha e persistente LGBTfobia, mas há também uma narrativa dominante que opõe ordem e caos. A ordem seria representada por uma sociedade heterocisnormativa, enquanto o caos é corporificado pela fluidez dos corpos queers, que com seus modos de ser e se relacionar colocam em xeque os valores — muitas vezes hipócritas — da sociedade tradicional.

Mas voltando à pergunta: por que nós, gays, gostamos tanto das vilãs? Paola Bracho, Odete Roitman, Malévola, Úrsula, Elektra, Nazaré Tedesco, Cruella…

Penso que essa é uma resposta que exige uma reflexão mais analítica sobre as polaridades “princesa versus vilã” e como essas figuras se estruturam dentro de nós. É urgente romper com essa dicotomia e nos exigir um olhar mais crítico, mais complexo.

A experiência de se reconhecer como pessoa LGBT não nasce de uma súbita autoconsciência. É um processo denso e atravessado por percepções não nomeadas, que se opõem às expectativas sociais impostas, primeiro por nossos pais e familiares, e depois por instituições como a escola. Assim, vamos aprendendo que aquilo que sentimos é “errado”, “sombrio”, “inadequado”. E precisamos esconder, camuflar, disfarçar. Muitos de nós aprendem até a performar a princesa.

Sim, é fácil performar a princesa. Na verdade, é fácil performar tanto a princesa quanto a vilã, porque ambas são arquétipos que não exigem, num primeiro olhar, muita complexidade. Elas comunicam por meio de seus gestos, signos e códigos esperados o que a sociedade quer ver como “bem” e “mal”, “moral” e “imoral”. Repare: as princesas buscam o amor, escondem sua sexualidade sob uma imagem virginal e esperam o príncipe. São doces, compreensivas, compassivas. E, sobretudo, têm a garantia de um final feliz.

Já as vilãs escancaram sua sexualidade — seja na voz, no corpo, no olhar. Elas afirmam e bancam seus desejos. São leais a si mesmas. Preferem a inteligência e a sagacidade à bondade passiva. Sabem que, por serem quem são, o mundo não lhes dará garantias. Precisaram fazer — e não apenas esperar — seus próprios finais felizes.

Nessa dinâmica arquetípica, entre a princesa e a vilã, podemos compreender a tensão psicológica que muitos LGBT enfrentam, e por que nosso pêndulo simbólico e estético costuma se inclinar para o lado da vilã. Quando percebemos que nossa sexualidade e/ou identidade de gênero não cabem no espectro esperado, recorremos à performance da “boa moça”. Quantos LGBT não buscaram refúgio em instituições religiosas? Afinal, que lugar melhor para esconder do mundo — e de si mesmo — que se é queer, do que uma instituição que aparenta encarnar a moralidade absoluta?

Mas não se trata apenas de hipocrisia — embora às vezes seja —, e sim de uma tentativa desesperada de defesa diante de um mundo que nos nega. A princesa, nesse contexto, é um disfarce funcional: caridosa, empática, amorosa. Mas falta-lhe algo fundamental: autenticidade.

E autenticidade é tudo o que a instituição heterocisnormativa não quer. Deus, pátria e família não sabem lidar com sujeitos complexos, críticos, autênticos. Porque é difícil administrar uma sociedade assim. E quando alguém decide ser autêntico, é imediatamente jogado no papel de vilão, imoral, pecador, sujo. E, parafraseando Clarice Lispector: “Se o jeito é ser, então que seja.” O sujeito passa a reconhecer, na sombra projetada sobre ele, o seu brilho próprio.

E quem sempre representou essa autenticidade irreverente no imaginário coletivo? Sim, a vilã.

Mas é importante lembrar: a vilã também não acolhe toda a complexidade de que somos feitos. Reduzir-se a essa figura — mesmo que empoderada — é ainda cair na armadilha da dicotomia criada por uma sociedade que precisa tanto da princesa quanto da vilã para manter sua estrutura de poder.

Nós, LGBT, precisamos sair desse jogo maniqueísta. Precisamos quebrar a narrativa. Ser simultaneamente muitas coisas. Podemos — e devemos — ser inteligentes e bondosos, sensuais sem sermos objetificados. Podemos ter sexualidade e também espiritualidade, sensibilidade, ambição, vulnerabilidade. Podemos moldar nossos próprios finais felizes, mesmo que isso exija luta, dor e enfrentamento.

Podemos continuar admirando a estética das vilãs — usá-la como escudo, como se carrega a cabeça da górgona num escudo de batalha — mas precisamos lembrar que a felicidade exige integração. Integrar todas as partes de nós mesmos — até aquelas que a sociedade rejeita.

Por fim, um brinde às princesas, um brinde às vilãs — e fogo nos príncipes que não fazem nada e ainda querem os louros no final do filme.

Foto de Bruno Cortés FP

Respostas de 3

  1. Um texto profundo, que me fez pensar e refletir sobre como esses moldes impostos me influenciaram e ainda deixam resquícios de seus efeitos, ao mesmo tempo que percebo essa autenticidade que eu homem gay precisei desenvolver. Obrigado por transformar em palavras esses sentimentos, emoções e pensamentos que muitas vezes perpassam por nós LGBTs.

  2. Que texto profundo.Faz pensar em como é sutil e perverso a exclusão em nossa sociedade, a construção desses arquétipos vilões X mocinhas é a manutenção da narrativa do patriarcado opressor.Parabens.

    1. Olá minha amada irmã, fico muito contente em poder ler seus comentários. Sim, está dicotomia é sutil e uma manutenção. É preciso sempre exercitar o olhar para além dela.

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