Poder e seus meandros

É interessante os mecanismos pelos quais o poder funciona, de fato. Sempre que falamos de poder, pensamos na polícia, na mãe e no pai, no juiz, no diretor da escola. Nesses focos, o poder é explícito e exercido numa direção clara. E isso acontece porque nossos corpos, quando precisamos dos nossos pais, da escola, da polícia ou do juiz, estão submetidos a uma disciplina em que o controle não está conosco. Mas fora de nós. Precisamos obedecer.

No entanto, o poder é menos sobre obediência e mais sobre convencimento. Quando falamos sobre poder, apesar de nos vir à mente a instituição ou mesmo o abuso do poder (na figura do ditador, do abusador, do sociopata que submete suas vítimas), de fato, trata-se de sutilezas, de detalhes e de uma coordenação de forças sociais em torno de coisas bem específicas.

A primeira delas é que o poder só se exerce dentro de um regime de verdade. As certezas, leis, determinações em uma sociedade são importantes para sustentar o poder. As verdades sempre são relativas e seu limite está no poder que fica à sua borda, ao mesmo tempo em que a verdade é a retaguarda do poder.

Nenhuma verdade se sustenta sem um saber. O saber é uma prática discursiva de onde se pode enunciar sujeitos, ou seja, uma organização de enunciados, de coisas que se podem dizer de outras coisas que podem criar relações de submissão ou de superioridade. O saber pode ser uma religião, um sistema legal, uma ciência, uma tradição antiga, uma série de regras numa comunidade alternativa. A verdade depende o saber, porque ele lhe dá os contornos corretos, por sua vez, o saber precisa da verdade e de sua presença transcendente para se sobrepor a outros saber concorrentes.

Michel Foucault: sexo, poder e a política da identidade (1982)
O conceito de poder usado nesse texto faz parte das teorias e práticas filosóficas do francês Michel Foucault (1926-1984)

E esse esforço é que cria o poder. O jogo entre verdade e saber é produtivo, positivo. E para se exercer em sociedade, o poder precisa ser dosado da maneira correta. Não pode acontecer em permanente estado de exceção. Por isso o poder se exerce nos meandros das relações sociais, por meio da aceitação da verdade, por meio dos usos dos benefícios do saber.

Por exemplo: a saúde pública, o uso das vacinas. Sua aplicação em sociedade veio por meio do convencimento. No início da era vacinal, na primeira década do século XX, as vacinas geravam medo, revolta. No Rio de Janeiro, em 1904, houve a Revolta da Vacina, uma insurreição contra o poder institucional que teve a vacinação contra a varíola como estopim, mas, de fato, era também uma forma de embate a todo e qualquer tipo de ação violenta vinda do poder governamental. Essa época mostrou a necessidade de se exercer o poder por outros caminhos, que não o da ordem e da simples obediência. As pessoas precisam ser convencidas do que é o melhor para elas. Para isso, é necessário que haja educação básica para a população: o ensino de linguagens, matemática, ciências, por exemplo, torna a necessidade de vacina razoável, assim as pessoas podem, voluntariamente, procurar a imunização sem a necessidade da imposição policial ou judicial. Quanto mais efetivamente educada é uma população, menor é a resistência contra o poder de fazer viver e deixar morrer, marca essencial dos governos democráticos. Ao fazer a gestão da vida, o governo precisa dos saberes para convencer os cidadãos a cuidarem de si, voluntariamente, sendo que o governo também dá condições para que esse cuidado aconteça. Assim, o povo ajuda na gestão de si mesmo, até um ponto que o governo se torna algo bom, suave, desejado.

REVOLTA DA VACINA T
A charge foi publicada antes da Revolta da Vacina, em 1904, mostrando as tensões entre o povo e a polícia governamental. Publicada em 29 de outubro de 1904, no periódico “O Malho”

À medida em que os saberes são questionados, o poder e a verdade também correm riscos, isso pode gerar uma judicialização de coisas que já eram feitas voluntariamente. Pode gerar também a necessidade do uso da força e o enfraquecimento do poder, que passa a não ser mais lógico, pacífico. Quanto mais violento o poder, mais ele gera resistência, mais ele produz efeitos indesejados ou sai do controle. Vamos pensar sobre isso um pouco. Que poderes estão saindo do controle, nesse momento, na nossa sociedade, por causa da relativização de verdades e do questionamento de saberes antes úteis e benéficos à população? Quem souber, ganha um doce.

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