Olá querido (a) leitor (a), tudo bem?
Eu gostaria de não escrever mais sobre a gordofobia, mas não dá para fazer de conta que ela não existe…
Quando pessoas gordas deixam de se vacinar porque preferem não participarem do julgamento do qual elas são as principais rés, mesmo sendo uma das principais vítimas desde que a pandemia se tornou uma realidade em nossas existências.
Quando pessoas gordas não acedem a cargos mais elevados ou simplesmente não são contratadas pois o excesso de peso é associado à preguiça.
Quando pessoas gordas precisam apresentar justificativas plausíveis ao tomar dois copos de refrigerante ao invés de um, ao comer mais do que um singelo prato de comida em uma confraternização, por exemplo.
Quando pessoas gordas sentem vergonha ao pedir um prolongamento do cinto no avião.
A pergunta que eu faço para você caro (a) leitor (a) é a seguinte: quando nos tornamos caretas e intransigentes ao ponto de querer que todos sejam iguais : tenham o mesmo IMC, a mesma morfologia, o mesmo corte de cabelo, a mesma orientação sexual, a mesma orientação política, etc?
Porque embora a gente tenha vivido durante um mês em um mundo paralelo no qual a diversidade é valorizada por todos e o ser quem você é respeitado, quando as câmeras não filmam, os finais não são tão felizes assim.
Mariza*, 30 anos, gostaria de fazer um curso para se tornar técnica de enfermagem do trabalho.
Ela já havia feito um curso antes para se tornar técnica de segurança do trabalho. Infelizmente, por ser mulher – ela era a única da sua turma aliás, ela não foi contratada por nenhuma empresa por não ser capaz de fazer com que os funcionários respeitem as regras (cof, cof, desculpa esfarrapada).
Como todos os outros candidatos, Mariza fez sua inscrição no processo seletivo, forneceu todos os documentos pedidos, fez uma prova. Por sorte foi chamada para fazer uma entrevista e explicar o porquê de querer fazer um curso de técnico de enfermagem.
Eu não estaria aqui hoje falando sobre o que aconteceu se Mariza tivesse sido entrevistada de forma respeitosa e professional.
Mariza é como eu sou: uma pessoa gorda.
Uma pessoa gorda que quer se qualificar e aceder a um determinado cargo como a maior parte das pessoas. Todos sonhamos.
Mariza não somente é uma pessoa gorda: é uma pessoa gorda que conhece as dores e as delícias de ter sido operada: ela fez a famosa cirurgia bariátrica.
Ela não estava doente na época, mas a fez para diminuir riscos ligados à obesidade mórbida.
Por que estou falando tanto da Mariza ?
Porque sou amigo dela, porque sei que ela é uma pessoa que vai à luta e segura o rojão.
Ela perdeu peso mas não é ainda uma pessoa magra.
Somente Mariza pode falar sobre o sucesso ou o fracasso da sua empreitada, a gente não.
Então, Mariza foi na bendita entrevista.
O entrevistador era uma pessoa tão gorda quanto ela, o que importante frisar.
O que ele perguntou à Mariza?
Vamos lá :
“Como você conheceu o seu marido?”
Não, o nome dela não é Jennifer, mas eles se conheceram no Tinder.
“Qual é o peso dele?”
Ele pesa em torno de 58 quilos.
“Ele já sentiu vergonha de estar ao lado de alguém como você?”
Vergonha por ela ser gorda, ele quis dizer…
“Você disse que fez uma cirurgia, qual foi?”
Ela respondeu que foi a bariátrica.
“Não acredito que você fez redução do estômago. Como pode ser verdade. Olha para você”.
Eu não sei mais o que dizer.
“O que você costuma comer?”
“Por que você relaxou?”
“Você pretende ter filhos gorda assim?”
“Vai operar novamente?”
Eu lhe convido caro (a) leitor (a) a relembrar o motivo de Mariza ter ido fazer entrevista.
Tic tac, tic tac, tic tac
Pois é, Mariza gostaria de ter explicado o motivo de querer cursar enfermagem.
Ela deveria ter tido a oportunidade de explicar porque se sentia capaz de fazer o curso e como faria para chegar até o fim e obter o diploma. Falar do seu sonho e como realiza-lo era importante para ela.
Por ser uma pessoa gorda, Mariza não obteve a tão sonhada vaga. Ela voltou para a casa chorando, desapontada.
Ela não desistirá, eu sei.
Eu preciso dizer que ao entrevistador e a boa parte da sociedade falta ter mais espelhos em casa e também vontade de olhar para eles e se enxergar.
Em muitas empresas as pessoas gordas são vistas como incapazes de realizar tarefas somente por ser quem elas são, como elas são.
Muitas vezes, embora elas sejam perfeitamente capazes de executar as tarefas como pedido, elas são vistas como preguiçosas.
Como não chamar de preconceito tais atos?
Falta às empresas como um todo focar na adequação entre as suas necessidades e as competências dos candidatos.
Falta profissionalismo e lisura.
Quantas técnicas de enfermagem gordas vocês já viram?
Eu já vi várias.
Mariza não é gorda ao ponto de seu peso afetar a sua performance.
Estamos falando de um caso concreto de aparência primar sobre competência.
O entrevistador estava conversando com alguém que ele acabou de conhecer num ponto de ônibus, não de fato fazendo o necessário para selecionar um (a) candidato (a) de maneira fiável.
Respeito e seriedade não são seus valores.
Agora eu pergunto: quem saiu ganhando?
A instituição de ensino não terá uma aluna dedicada e sonhadora sentada em seus bancos.
O entrevistador será somente parte de uma lembrança ruim armazenada nos cérebros de Mariza e de sua colega de trabalho, indignada devido as questões formuladas.
Mariza teve sua confiança em si mesma mais uma vez abalada por alguém desrespeitoso que ela não conhecia e nem deveria acontecer.
Somente quem obteve a vaga pode comemorar.
O que aconteceu com Mariza não deveria se repetir. As pessoas gordas merecem respeito.
É necessário que nos próximos meses as pessoas passem a cuidar mais de suas próprias vidas ao invés de querer que o outro seja como elas mesmo são.
A aparência não deve primar sobre a competência. Todos saem perdendo.
Gordos, magros, brancos, negros, somos diferentes. É a diversidade que nos enriquece.
As empresas precisam formar quem trabalha para elas a respeitar o próximo mesmo que seja somente numa lógica de “todo mundo pode ser meu cliente”.
É preciso sempre fazer mais. Precisamos avançar, nem que seja a passos lentos.
*Mariza não se chama Mariza, mas existe e os fatos são infelizmente reais.
Foto de capa por SHVETS production no Pexels