No texto da semana passada, falei um pouco de como a moralidade pode trazer problemas para as pessoas, porque os mesmos princípios que parecem reger a justiça e o bem estar de uns, pode ser motivo de exclusão de outros, minorias ou não. A razão para que isso aconteça é a desigualdade social. Os Direitos Humanos, desde sua origem no Iluminismo europeu trazem em si uma profunda distorção. Embora se baseiem na concepção de direito natural, pelo qual todos seriam titulares dos mesmos direitos, independente de diferenças quaisquer, de fato têm sido aplicados de maneira incompleta, quer seja pela ação estatal na sua promoção ou manutenção, quer seja pelos conflitos de classe, em torno da disputa pelos benefícios que esses direitos propõem.
Um mundo mais igual é um mundo em que o que está acumulado se divide para todos, ou pelo menos para alguns, eis o motivo da resistência em se buscar acesso amplo a tudo isso. Focando-se numa palavra específica que já foi dita nesse texto: direito natural. O estado de natureza em que todos os homens são iguais também é algo extremamente problemático. Nem todos na sociedade são exatamente entendidos como naturalmente possuidores de direitos.
Na Europa Moderna, a ideia de organização social passa pela institucionalização das formas de governar, do controle das populações, dos corpos dos indivíduos e da existência de um estado financiado pelos impostos da população. Esse tipo de sociedade se esforça, desde o início, pelo controle proativo da vida e da morte, buscando maximizar as forças dos corpos para o trabalho por meio de técnicas econômicas e administrativas, organizadas por uma política específica.
No entanto, esse controle tem um lado que não é muito aparente. O controle da vida, de fato, é um controle da morte, por meio de uma economia que permite a morte ou a vida em condições mortais de certa parcela da população, além do uso de saberes médicos na produção dos anormais. Esse esforço em categorizar, patologizar, vigiar, punir e controlar é anterior à real necessidade de cura e contenção dos corpos.
Herdamos isso da cultura europeia que criou nossas instituições estatais e leis. Herdamos também os anormais: os loucos, afeminados, sodomitas, as bruxas, os adoradores do demônio, mulheres da vida, deficientes físicos e intelectuais. Posteriormente, a medicina, a partir de critérios clínicos absolveu muitos desses tipos, reclassificando-os, colocando-os ou não dentro da esfera da normalidade. Teria sido isso o que aconteceu com a homossexualidade, a partir da segunda metade do século passado. E com a situação das pessoas transgênero, nos últimos anos. No entanto, isso não garante que as pessoas sejam aceitas pela sociedade de maneira completa, ao contrário. A suspeição sobre os anormais atravessou o século até hoje, seja pelas restrições religiosas ainda existentes, seja pela cultura sedimentada por séculos de tradição condenatória e pejorativa.
De fato, gays ainda são tratados como anormais, mesmo onde aparentemente sejam aceitos e até celebrados. Isso fica claro na dificuldade que ainda existe para entender gays como capazes de ser pais legítimos até mesmo de filhos biológicos. Ou mesmo quando em certas profissões, homens gays não tenham acesso a promoções ou cargos de chefia. Ou quando não se pode imaginar gays ocupando espaços específicos, destinados a figuras masculinas, do mercado de trabalho. Se gays são normais, então não há problemas em se ter jogadores de futebol com altíssimo valor de passe que sejam gays. Aliás, não só jogadores de futebol, mas de vôlei, de basquete, nadadores, lutadores de boxe. Se gays são normais, então numa obra de construção civil seria comum encontrar gays trabalhando como serventes ou pedreiros. Ou como trabalhadores braçais em fazendas, ou operários em fábricas sem que seja necessário se disfarçar seu jeito de ser. Ainda há resistência a professores gays em escolas de educação básica, mesmo que seja comum encontrá-los. O que dizer a respeito da presença de gays na medicina, quer sejam assumidos ou não? De que forma são vistos, como conduzem suas práticas e comportamentos para que sejam respeitados?
No entanto, as pessoas não parecem se importar tanto com gays vendedores, principalmente em determinados tipos de loja, embora seja comum reprovar-se o comportamento afeminado de alguns, o que é considerado ofensivo por clientes e empregadores preconceituosos. Há quem considere gays como excelentes decoradores, enfermeiros, cabeleireiros, maquiadores, músicos, artistas visuais, cantores, etc. Há um profundo estereótipo que carrega uma certa relação com a anormalidade. Porque mesmo quando essas pessoas buscam espaços em que possam se desenvolver, continuam excluídos no que é considerado normal para os parâmetros masculinos. Então a anormalidade persiste.
Antes de finalizar, é preciso entender que procuro fazer uma leitura ampla da situação, mas fortemente marcada pela realidade onde vivo. Pode ser que você que more em determinadas cidades ou locais do país, tenha uma visão diferente das coisas. No entanto, a relação entre a homossexualidade e a anormalidade patológica ainda não acabou na nossa cultura, ou mesmo nas culturas do norte que servem de referência aos nossos intelectuais. Se você é gay, lésbica, bissexual ou pessoa trans, por exemplo, ainda vive, na prática, as dores dessa anormalidade, toda vez que é atacado por um comentário agressivo, quando falam mal de pessoas como você, supondo mau comportamento por causa da orientação sexual.
A anormalidade ainda persiste no discurso da maioria das religiões cristãs, mesmo do catolicismo romano que, apesar das declarações do Papa, não reformulou seu catecismo e nem sua teologia, para permitir que os gays tenham acesso a todos os sacramentos, inclusive o casamento religioso e o batismo de filhos. Você, gay, será tratado como anormal quando um médico homofóbico questionar suas práticas sexuais como antinaturais, mesmo que o uso do corpo em sociedade para o trabalho inclua várias práticas danosas e agressivas, o que o sexo entre dois homens não é. A anormalidade persiste na dificuldade em adotar crianças, mesmo com as recomendações judiciais para que isso aconteça.
Portanto, a problemática em torno da vivência de si mesmo como LGBTQIA+ não se define apenas pela orientação sexual, ou pela vivência da sexualidade de modo diferente da maioria, mas pela persistência de uma anormalidade que tem origem na condenação religiosa e continua, mesmo que a medicina nos tenha alforriado, um dia desses aí atrás. No entanto, não entendamos isso como justificativa para o preconceito e a exclusão que sofremos, mas usemos isso como conhecimento para empoderar e emancipar a nós todos.
Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos
Entre em nosso grupo de WhatsApp Boletim Pró Diversidade e receba notificações das publicações do site.