Orgulho e Preconceito

Foto da Parada do Orgulho Gay de São Paulo

Eu às vezes sou meio lerdo para perceber as coisas e estabelecer relações entre elas. Somente após a publicação da primeira coluna, duas semanas atrás, é que me dei conta de que minha estreia coincidia com o Mês do Orgulho LGBTTQI+, celebrado em junho. Naturalmente, fiquei muito feliz com a auspiciosa coincidência (alguns talvez diriam sincronicidade). E soube imediatamente que teria que escrever sobre o Orgulho LGBTTQI+ nesta segunda coluna.

A Parada de São Paulo deste ano estava prevista para o domingo, dia 14 de junho, dia em que começo a escrever este texto. E a Marcha de Lisboa estava prevista para o sábado, dia 20. Esta coluna será publicada na quarta-feira, dia 17, ficando assim imprensada entre essas duas celebrações que não acontecerão esse ano, em função da pandemia causada pelo Covid-19, que veio ameaçar nossas vidas e adiar ou suspender nossos planos e projetos imediatos por tempo ainda indeterminado. Espero que estejam todos bem e que estejam tomando as devidas precauções e mantendo o distanciamento social que o momento exige (aqui em Portugal já não estamos mais em quarentena, mas no Brasil ficar em casa tanto quanto possível ainda se faz necessário).

O fato de não podermos ir para as ruas este ano não significa que não possamos e devamos celebrar o Orgulho LGBTTQI+. A caminhada foi longa e difícil até aqui e ainda temos muito caminho para percorrer. Então, ainda que de modo diferente, precisamos manter acesa a chama do orgulho, honrar a memória dos que nos precederam e levantar nossas bandeiras, ainda que virtualmente.

Creio que todos conhecemos, pelo menos em suas linhas gerais, o “mito fundador” da celebração do Orgulho LGBTTQI+ (para citar a expressão utilizada por Renan Quinalha num ensaio publicado pela revista Cult em junho de 2019, “O mito fundador de Stonewall”). Na madrugada de 28 de junho de 1969, o bar Stonewall Inn, em Nova York, frequentado por gays, foi alvo de uma batida policial, algo costumeiro na época. Entretanto, naquela noite, ao invés de submeter-se com resignação às prisões e atos de violência por parte dos policiais, os gays, travestis, drag queens e transsexuais expulsos do bar deicdiram reagir e atacar as viaturas da polícia e os policiais refugiados dentro do Stonewall Inn, dando início a uma revolta que se prolongou por vários dias. A mobilização acabou aglutinando diversos membros da comunidade gay que se uniram e começaram a se organizar para lutar por seus direitos. No ano seguinte, uma marcha foi realizada para lembrar a data em que iniciou a revolta de Stonewall. E o mesmo aconteceu nos anos seguintes. Aos poucos, a data passou a ser comemorada em outras cidades e países, e se tornou oficialmente uma referência internacional para a luta pela igualdade de direitos e pelo fim da discriminação contra todas as minorias sexuais.

Atualmente, em parte pela crescente visibilidade e interesse que as questões relacionadas à diversidade sexual ganharam a partir de Stonewall, sabemos que, historicamente, as minorias sexuais já dispunham de mecanismos, formas e espaços de sociabilidade que antecederam o 28  de junho de 1969 e que, em muitos casos, continuaram a existir depois dele, e que o combate ao preconceito e à discriminação por orientação sexual também tem uma história anterior a Stonewall, inclusive em regiões consideradas periféricas, como a Argentina e o México. Stonewall não inventou a “comunidade” nem o movimento LGBTTQI+.

Não devemos, entretanto, subestimar o papel desempenhado pela revolta de Stonewall na nossa história de afirmação e luta. O que aconteceu naqueles dias no Greenwich Village e na Christopher Street (é curioso observar que, na Alemanha, as manifestações do Orgulho LGBTTQI+ são chamadas de Christopher Street Day – CSD, dando mais ênfase ao que aconteceu na rua do que ao nome do bar onde tudo começou) e os desdobramentos da revolta contribuíram de forma decisiva para colocar o movimento LGBTTQI+ na trilha que ele segue até hoje, com todas as inflexões provocadas pela própria dinâmica do que se seguiu, com destaque evidente para os efeitos de outra pandemia mortal e devastadora para a nossa comunidade: aquela causada pelo HIV-AIDS.

Estava aqui escrevendo e me lembrando de todas as inúmeras marchas, paradas e festivais do Orgulho LGBTTQI+ em que tive a felicidade de participar na minha vida. Não lembro bem de quando foi a primeira. Mas houve anos em que fui a várias em diferentes cidades. E, embora todas tivessem algo de único e particular, em todas eu me vi sempre invadido por uma sensação de pertencimento, ao mesmo tempo confortante e eufórica. Estar ali, no meio de toda aquela gente, afirmando meu direito de existir e de ser quem eu sou. Mais do que isso, afirmando minha alegria de existir e de ser quem eu sou. E saber que não estou só nessa afirmação. Que todas aquelas pessoas ao meu redor, tantas tão diferentes de mim em tantos aspectos, têm em comum comigo este poder afirmativo. Ou melhor, que é justamente o fato de estarmos juntos ali que fortalece e potencializa este poder em cada um de nós. Só quem viveu sabe, Gabi. Só quem vive sabe.

O poder afirmativo de existir que manifestamos na rua todos os anos no mês de junho (ou em outras datas, em alguns países e cidades) deve traduzir-se, no cotidiano, na garantia do direito de existir. Existir sem ser vítima da violência motivada pela homofobia, pela lesbofobia, pela transfobia ou por qualquer fobia dirigida às minorias sexuais. Existir sem ser alvo de discriminação, desde a criminalização da homossexualidade que ainda vigora em inúmeros países até a negação do acesso a direitos básicos e universais em função da orientação sexual, como trabalho, saúde, educação, além dos direitos civis, como o casamento.

Garantir direitos e coibir e punir a violência é tarefa do Estado. Fiscalizar e exigir que o Estado cumpra o seu papel é tarefa da sociedade civil e de cada cidadão. Que a euforia e a sensação de pertencimento que vivemos nas ruas quando manifestamos nosso orgulho a cada junho sejam o combustível que alimenta nossa luta no resto do ano.

Avançamos muito desde Stonewall em termos de visibilidade e representatividade (embora ainda haja muito o que fazer nesse campo também). Uma maior visibilidade contribui para que as diferenças que encarnamos sejam melhor acolhidas por muitas pessoas, ao mesmo tempo em que exacerba e traz à tona atitudes frequentemente radicais e ruidosas de negação do nosso direito de existir, como infelizmente temos visto nos últimos anos. Quando saímos do armário, obrigamos muitos homofóbicos a sair dos lugares escuros de onde nos atacavam. E tornamos mais visíveis e evidentes os preconceitos que nos oprimiram historicamente.

Por isso, parece-me essencial ter presente que a luta não se esgota nos embates com o Estado e suas instituições. A declaração fundadora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) afirma que a guerra nasce na mente das pessoas. O mesmo vale para o preconceito e tudo o que ele traz de excludente, violento e discriminatório.

Precisamos, cada vez mais, promover e celebrar a diversidade da nossa comunidade, a mesma diversidade que sentimos de forma tão impactante nas comemorações do Orgulho LGBTTQI+. E isso começa dentro da própria comunidade, com o respeito e o acolhimento das nossas diferenças internas. Com o identificação, o reconhecimento e a dissolução dos preconceitos e certezas que cada um de nós alimenta. Não existe um jeito certo ou errado de ser gay, lésbica, bissexual, transgênero ou o que for que nos inspire o nosso desejo. O que há é a possibilidade sempre renovada de nos libertarmos das normas que buscam regular, disciplinar e controlar nosso desejo para que possamos explorá-lo na construção das nossas subjetividades e do nosso jeito próprio de estar no mundo, sem deixar de nos sentir parte de uma comunidade maior que nos acolhe e potencializa nosso poder afirmativo de vida e de alegria.

Pouco antes de começar a escrever esse texto, eu abri o Facebook e, como todas as manhãs, apareceu para mim uma lembrança de um post passado. A de hoje era uma citação do sociólogo francês Didier Eribon, de um livro chamado sugestivamente “Da Subversão – Direito, Norma e Política”:

“Não cabe a nenhum de nós dizer o que é desejável ou não para os outros. Cabe a nós todos fazer com que aquilo que é desejável, para uns e para outros, se torne possível, acessível. Trata-se então de trabalhar para apagar as fronteiras que proíbem aos indivíduos o acesso ao que eles querem ser, ao que eles querem viver, e que continuam a exclui-los, não somente do que existe, como no caso de Barthes e do casamento, mas do que ainda não existe, e que aparece ou aparecerá um dia, sem que possamos antecipá-lo, possível de criar.”

Dessa vez, excepcionalmente, não demorei para perceber a sincronicidade. E soube na hora que era assim que eu queria concluir esta coluna.

Até a proxima!

PS1 – Um ótimo livro para conhecer e refletir melhor sobre diversas questões relativas à temática LGBTTQI+ é “The No-Nonsense Guide to Sexual Diversity” (New Internationalist Publications, 2007 para a segunda edição atualizada) da jornalista britânica Vanessa Baird (https://newint.org/author/Vanessa%20Baird – Twitter: @Vanessa BNI).

PS2 – Não vamos marchar este ano, mas podemos celebrar em casa. Deixo para animar a festa de todos a Marcha do Orgulho, hino maravilhoso criado pelo fantástico duo português Fado Bicha (sigam-nos em todas as mídias disponíveis!):

Para ver mais textos de Paulo André Lima, confira sua coluna Bons momentos e quem sabe algo mais

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