Oposto ao Narciso: autoaceitação em crise

autoaceitação

Nunca fui de me achar bonito, na verdade, nunca fui de me achar nada. Desde que sou adolescente, quanto sou obrigado a me olhar no espelho, eu vejo uma pessoa estranha a mim mesmo. Isso é um dado preocupante para se confessar fora de uma sessão de terapia, mas eu sempre olhei com certa decepção para minha cara, nunca tiva muita autoaceitação. Parecia que outra pessoa estava dentro do meu corpo, essa pessoa se via diferente. Eu queria ser branco, magro, interessante.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Mas não deu certo. E comecei a achar que eu deveria. Mas também, caros leitores, eu era um adolescente muito desengonçado. Como todos os adolescentes. Mas a verdade é que eu cheguei bonito ao final dos meus anos de puberdade. Eu era um garoto de estatura mediana, 80 kg bem distribuídos pelo corpo, tinha belas pernas, um cabelo de dar inveja, boca grande, de grandes lábios, uma pele relativamente livre de acne. gostava de estudar, eu me esforçava para ser alguém legal. Esse esforço também era uma forma de tentar achar autoaceitação.

Distorção e autoaceitação

No entanto, isso não era o suficiente. Eu me olhava no espelho e via uma imagem distorcida de mim mesmo, nunca via minhas possibilidades e belezas, eu precisei envelhecer, amadurecer para descobrir que um dia fui um jovem bonito. Ou seja, a homossexualidade reprimida me deixava intimidado. Não tímido, mas reprimido, recalcado e incapaz de me amar. Penso nisso toda vez que alguém argumenta que as pessoas não precisam se assumir.

Claro, acho que se a vida da pessoa corre risco, se a pessoa ficará sozinha e abandonada em lugares onde não conseguirá apoio, manter-se em silêncio a respeito de sua sexualidade, ou em silêncio, pelo menos, é razoável. Mas se eu tivesse essa possibilidade de me abrir com as pessoas ao meu redor e pelo menos ser aceito, talvez eu pudesse colocar meu corpo na trilha do desejo, de maneira adequada. Esse era meu problema. Eu queria muito ter desejos normais, vontades normais.

Bipolaridade e autoestima

O fim da minha adolescência coincidiu com a maior derrota e a maior vitória da minha vida. Todo esse sofrimento e crise de identidade era acompanhado de muito sofrimento e adoecimento mental. Lutei por sete anos contra crises cada vez piores de bipolaridade. Até que em 2001, fui obrigado a me internar após um surto de mania aguda muito forte e perigoso. Portanto, ao voltar disso tudo, passei a ter o privilégio da calmaria que a saúde mental me trouxe.

Isso me trouxe mais naturalidade para lidar com as questões da sexualidade. Não queria mais negar, ao contrário. Passei a conhecer a minha própria condição e formar uma opinião positiva sobre ser como eu era, passei a ter autoaceitação. Quatro anos depois disso tudo eu ensaiei meus primeiros voos fora da esfera familiar. Mudei-me, arrumei um namorado que se tornou marido e vivemos felizes por um para sempre curto. Mas ainda assim passamos de uma década juntos. Foi uma grande e importante experiência, por meio da qual eu cresci e me constituí como pessoa, cidadão LGBTQIAP+.

Peso e autoaceitação

Tudo bem. Mas e quanto a mim? Minha cabeça, minha autoestima, minha autoimagem, minha autoaceitação? Pois é. Foram muitos anos, quase duas décadas, de 2001 até hoje. Eu simplesmente varri esse assunto para debaixo do tapete. Porque nunca liguei para meu corpo de forma adequada. Nunca me cuidei adequadamente, tratei apenas problemas urgentes de saúde.

Eu não tinha tempo para isso, estudando, trabalhando em tempo integral, sustentando uma casa para que meu marido pudesse se dedicar às suas pesquisas, ao seu mestrado, ao doutorado e por fim ao vício em álcool. Eu nem pensava muito em corpo. Vi-me sair dos noventa quilogramas e chegar aos cento e trinta e cinco. Meu marido aparentemente me curtia como eu era, sem tantos grilos, mas nossos últimos anos juntos foram marcados por muita rejeição mútua e muito ressentimento. De fato, ganhar peso não foi uma escolha, não foi um processo que incluiu um cuidado adequado com o corpo. Não cheguei a ter o corpo que tenho por opção, mas por falta dela. Por um descontrole de minha vida, por não conseguir lidar com o estresse que eu passava, eu provavelmente deixei esse e outros problemas de lado. Eu era indiferente quanto à autoaceitação.

Fim do casamento: novas possibilidades e autoaceitação

Quando eu me separei e passei a conviver novamente com minha mãe, ela sempre fazia questão de me mostrar que eu estava melhorando. Saúde física, mental, aparência, saúde financeira. Ela sempre comentava: sua gastrite sarou. Você está melhor, você dorme melhor, você está mais bem humorado. De fato isso foi acontecendo. Paguei contas atrasadas, organizei-me e por fim eu tive de encarar meu corpo, minha aparência. De novo, eu me vi incapaz de mudar essas coisas, sofrendo do mesmo tipo de atitude de antes: procrastinar o que deve ser feito, evitar até mesmo o amor próprio. Mas as coisas mudam, mesmo que lentamente. Sem marido me enchendo o saco e querendo determinar o meu corpo, passei a cultivar uma barba. Isso me fez me olhar mais.

Obviamente porque eu preciso manter, aparar, cuidar, lavar. Experimentei vários tamanhos até que uma barba mais longa me agradou. Mesmo que isso significasse parecer mais velho. Aos 39 anos, tenho alguns fios de cabelos grisalhos (que acabam se disfarçando) na cabeça. Mas a barba é quase toda branca. Eu gostei do padrão das cores. Não só eu. Muita gente elogia, gosta. Para falar a verdade, essa barba me deu toda a notoriedade que eu nunca tive. As pessoas olham, comentam. Elogiam. Alguns dizem que não gostam. Mas pelo menos dizem. Passei a não mais sofrer daquela feiura invisibilizante. De fato, passei a ser chamado de bonito, algo que eu não ouvia há quase duas décadas. Pois é. Finalmente os primeiros ensaios de autoaceitação surgiram.

Pequenas descobertas e a estima

Hoje aconteceu algo curioso. Sou professor numa escola pública. Por causa da pandemia, as aulas estão suspensas. Fui visitar um aluno com dificuldades de acesso à Internet em sua casa, para levar atividades, num povoado fora do traçado da cidade. Fomos minha mãe e eu, chegando lá, a mãe dele nos pôs a sentar numa mesa e estando todos seguramente distantes, eu tirei a máscara para falar melhor e enquanto conversava, um pintinho de seu quintal, já com penas, pulou em mim, de maneira amistosa. Foi muito engraçado. Minha mãe se aproveitou do momento e fez fotos.

Não resisti, postei nas redes sociais, motivo pelo qual passei a tarde inteira dando risadas com meus amigos virtuais. No entanto, a foto é interessante a mim porque a imagem me mostra inteiro, o meu corpo todo. Eu não costumo me ver, de repente eu me vi. Gostei do que vislumbrei. Pela primeira vez em quase vinte anos eu gostei do que percebi, gostei do meu cabelo, da minha barba, da minha roupa, do meu calçado, gostei mesmo. Era a tão esperada autoaceitação. É só um gordo sentado numa cadeira. Mas é uma imagem amigável que me fez sentir bem como há muito não sentia. Eu, o oposto do Narciso, olhava no espelho para fazer a barba ou para pentear o cabelo, apenas. Odiava meu corpo e minhas roupas, sempre me senti sufocado nessa pele alargada pelo aumento de peso. No entanto, agora eu me via.

Tocando em frente

Alguma coisa mudou. De repente eu estava bonitinho aos meus olhos. De fato, pessoas que são como eu são vistas por mim como bonitas. O meu problema sempre foi comigo mesmo. Talvez seja só hoje, só a onda, talvez eu tenha escolhido bem as roupas, mas não. São roupas velhas, comuns. Muito parecidas com as que eu uso todo dia. Eu gostei de mim mesmo na foto, eu gostei de minha representação, portanto eu demonstrei a mim mesmo autoaceitação. Talvez seja um passo que tenho esperado tanto tempo para dar, em direção ao espelho, não para me martirizar com meu triste destino em formato de corpo. Mas talvez para gostar de mim, no presente. Talvez eu já possa até arriscar dizer para mim que eu me amo, de verdade.

Uma canção que virou clichê como símbolo da maturidade cabe bem nessa hora:

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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