Os dias estavam quentes. Sampa ardia em brasa por conta do sol. Pancadas de chuvas depois de nuvens carregadas e o ar bem abafado amenizava o calor, mas tornava o dia para alguns mais cheios de dificuldades do que para outros. O casal passou o dia andando à procura de um abrigo para que a mulher desse à luz. Seu nome Maria. Ela tem uma pele morena, estatura mediana, sua barriga já está traçada com a linha que anuncia que o bebê irá chegar. Usa um vestido colorido, solto de algodão cru, tecido no tear de seus ancestrais, embora seja um pouco pesado, por ser de linha fria o tecido recai sobre seu corpo de mãe de forma elegante e harmônica, dando frescor ao seu corpo. Nos pés ela tem sandálias de couro feitas sob medida para que seus delicados pés aguentem o calor do asfalto e possa ajudá-la a caminhar. Maria sabe que carrega em seu ventre o Salvador, a luz do mundo.
Meses atrás uma série de presságios e milagres anunciadores firmaram em seu ser que a semente que trazia em seu ventre é o ungido, um bebê muito especial que trará ao mundo uma nova luz, a luz que pode ser acesa apenas pelo coração. Ante todos os sinais, o último veio na forma de um anjo a anunciar a sua condição de mãe do mundo, por isso mesmo mãe dos pobres, mãe dos humildes, mãe daqueles que estão doentes, mãe dos que sofrem. O anunciador não apareceu com asas, abertas e resplendentes, mas sim na forma de um mendigo que lhe pediu comida, com suas vestes rotas e trazendo em seu semblante a luminosidade divina, o dom de Deus de estar entre seus filhos mais amados, gente humilde; seus cabelos e barba prateados foram iluminados para que trouxesse àquela que lhe dera o que comer e o que beber, que ela seria a mãe de Cristo. José, seu marido, recebera em sonho a anunciação com fé e resignação.
Ele, este homem negro com cabelos encaracolados, espessos e volumosos, que ascendiam para o alto com toda a dignidade de seus ancestrais advindos da África, usava uma túnica cru, os seus pés fortes estão calçados com alpercatas feitas pelo próprio carpinteiro; seu semblante sempre calmo e resignado, mas firme e concentrado carrega belos traços, lábios grossos e bem feitos, nariz largo, sobrancelhas alongadas, sua testa recebe os primeiros firmes cachos que irão elevar-se ao alto como uma coroa; suas mãos são grandes e calejadas pelo trabalho de marcenaria, com uma ele segura seu alforje; dentro, carrega suas ferramentas de carpinteiro, com a outra pousa-a no ombro de sua esposa grávida em um gesto de proteção e amor.
O casal andou por vários dias e as casas mais suntuosas e confortáveis nunca foram abertas a ele. Aqueles que ali residiam não quiseram dar-lhe abrigo. Uns por não acharem que fosse um casal confiável, os tinham como marginais, outros pelo próprio egoísmo que traz dentro de si o ser humano, ao firmar sua posse e não querer partilhar, não querer dividir, não querer irmanar-se, entregues ao tabu do dinheiro. A cada porta fechada, as contrações de Maria aumentavam e ela lembrava da anunciação do anjo, do húmus brilhante e misterioso que ficou na cuia que ele comeu, que foi plantado no chão e de lá nasceu uma videira que cresceu e tornou-se esplendorosa e delicada; mais um sinal que viria ao mundo, Cristo.
Continuaram a caminhar por uma Sampa quente, por vezes abafada e chuvosa. Quando caíam as tempestades de verão, um ou outro com pena de casal, vendo-o abrigar-se embaixo de qualquer marquise, davam-lhe alguma esmola. Havia quem passasse e ao ver aquele casal, ela com seu vestido colorido, seus traços indígenas, seus lindos cabelos negros que adornavam de mais beleza as suas vestes; ele com sua cor de um ébano que reluzia ao sol. Alguns, olhando de longe conseguiam enxergar naquele casal a dignidade, resignação, majestade. O bebê que por vezes dormia confortavelmente na barriga de sua mãe, protegido pelo líquido quente que o fazia estar em berço materno, por ser o Cristo, o ungido, o Salvador, sabia que em breve viria uma pandemia, que colocaria a todos em risco que muitos morreriam, muitos sofreriam. Ele, sol invicto em todos os tempos, haveria de aplacar tanta dor.
Após muito caminharem, o casal desceu dos pontos mais altos da cidade para os pontos mais baixos, enfrentou alguns perigos, entrou por vielas e ruas, bateu em algumas portas e finalmente chegou a um a humilde casinha, com um jardim na frente e plantas de proteção à entrada da porta; dela saiu uma senhora humilde e idosa que, vendo aquele casal sem ter onde pousar, deu-lhes guarida. A primeira coisa que fez a pobre senhora, depois de alojá-los em um cômodo no quintal de sua casa, foi: descalçou lhe os pés, pegou uma bacia de água fresca e começar a lavá-los. Jesus, no ventre de sua mãe, sabia que lavaria os pés de Maria Madalena, e seria julgado por isso. Maria, ao pousar as mãos em sua barriga, sentia os pensamentos do filho. Ao toque da senhora em seus pés, previu a frase de seu amado filho. “Aquele que for isento de pecado, que atire a primeira pedra”.
Cristo estava por nascer. Onde ele não nasce. Não nasce naquele que deixa seu irmão entregue à própria sorte; não nascerá nunca naquele que foi indiferente; nunca há de nascer naqueles que usam a Jesus como estofo para sua maldade, para seu egoísmo, para julgar o outro fora de seus padrões; o Cristo não nasce naqueles que amputam a sua videira, partem-lhes os ramos, pisam em seus frutos, dizendo que ele está acima de tudo, mas o usam para pisar nos pobres, utilizando-o como aparelho ideológico do Estado. Se esquecem ou apagam o que ele disse um dia. “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me.” Não nascerá nunca onde houver preconceito por cor, etnia, orientação homoafetiva; não nascerá naqueles que discriminarem outro tipo de família que não o seu. Jesus nasce, nasce todos os anos no coração dos humildes, daqueles que estão abandonados, daqueles que estão doentes, daqueles que mesmo ante toda sua humanidade é capaz de se entregar ao seu irmão puro e sem reserva. Por isso, a revolução que ele traz é a mais difícil de ser cumprida. Por isso disse: “Sou a videira e vós os ramos”. Se o coração torna-se puro Jesus nasce. Mas essa imperante revolução que torna o homem verdadeiramente humano, se torna a missão mais difícil de firmar, de concretizar. Brilha a luz do mundo todas as manhãs naquele que faz pelo irmão.
Já instalados em um cômodo nos fundos da casa da velha senhora, Maria começou a sentir com mais intensidade as dores do parto e sua anfitriã cuidou para que ela desse a luz à criança o mais confortável possível. Maria então segurou seu bebê nos braços para amamenta-lo, aninhou com ternura e inspirada por um anjo começou a cantar aquela que seria a sua canção de ninar: “Alguém cantando longe daqui, alguém cantando é bom de se ouvir… Alguém cantando alguma canção. A voz de alguém nessa imensidão. A voz de alguém quando vem do coração, de quem mantém toda a pureza da natureza, onde não há pecado nem perdão”. Já era noite, uma estrela despontou no céu para anunciar que Jesus nascia, ante toda dor que viria, ele dormiu embalado na imensidão dos braços de sua mãe, onde não havia pecado nem perdão.
Feliz Natal e um próspero 2022!
Foto de Capa de Keith Mallett (Google/Divulgação)