Esse é um ano que começa difícil, embora ainda estejamos na sua primeira semana: 2022 é o terceiro ano de uma pandemia que pode não acabar. É um ano em que somos obrigados a encarar nossa responsabilidade na hora do voto: temos eleições em dez meses. É um ano em que a política, mais que nunca, permeará as discussões. Não a política, tipo Ciência Política. Ou a política filosófica. Mas a política do possível, do toma lá, dá cá entre candidatos, pessoas no poder, entre outros. Há de ser um ano complicado para todos porque sabemos que a nossa classe política não é cordata, não é justa. Há de ser mais uma eleição ao sabor das fake news, da desinformação, das mentiras e ataques físicos e psicológicos àqueles que buscarem, de alguma forma, a verdade.
A respeito de como funciona a política em países dominados pelo sistema capitalista, a grande novidade dessa estação é o filme “Não olhe para cima”, disponível no cinema e na Netflix. Em linhas gerais, para não dar spoiler de um filme tão recente: dois cientistas descobrem que um cometa está em rota de colisão com a Terra e tentam avisar as autoridades do perigo iminente. No entanto, a tentativa é frustrada por vários fatores, cuja análise mostra como a política conduz as coisas, quando quem manda é o interesse dos conglomerados capitalistas.
A imagem da liderança política
Nenhuma coisa é mais importante numa democracia do que… O povo? Não. A imagem de quem preside. No filme, tem-se uma presidente, vaidosa, tentando forçar a barra para que seu amante seja eleito para a Suprema Corte, ao mesmo tempo em que não quer dar uma notícia nefasta para o mundo antes das eleições para o parlamento, porque isso inviabilizaria o orçamento que o governo dela pretende gerir. Porque, em se tratando de uma tragédia iminente, os gastos emergenciais têm prioridade. O filme mostra a clássica tentativa de encobrir coisas erradas por uma rede de desinformação instrumental, para que o grande público não saiba das coisas, ou saiba apenas quando for mais conveniente. E esse jogo de sabe-não-sabe é só para proteger a cara de quem garante tudo: o onipresente presidente, figura contestável e até colocada como dispensável numa democracia.
Mas tradicionalmente as culturas ocidentais e de periferia (ex-colônias latinas) precisam de uma figura reinante. Assim também é a presidente dos EUA, uma rainha como muitos poderes, com uma equipe a blindar as suas safadezas morais no âmbito político e pessoal.
O papel instrumental da ciência
Quem estuda filosofia e história das ciências sabe que, desde o início do Idade Moderna (século XVI), o uso do conhecimento formalmente organizado, quer chamemos isso de ciência ou não, é subordinado ao poder estatal e ao capitalismo que nascia com o acúmulo de riquezas mercantilistas. Aliás, o capitalismo conseguiu, num movimento histórico bem sólido e marcado, tornar-se legal, “cientificamente” recomendado, tornou-se a vontade da média dos deuses cristãos europeus em voga e com esse aparato ideológico e pragmático, os europeus se debruçaram sobre as Américas, África e Ásia na sua sanha por lucro.
Séculos depois isso fez com que o capital intelectual e de desenvolvimento e riquezas ficasse num lugar só globo. O desenvolvimento ainda atravessou o Atlântico em direção aos EUA por motivos específicos da história desse país. Isso criou um “norte desenvolvido” em contraposição às colônias e ex-colônias do sul. A ciência, nunca existiu totalmente independente de seus patrocinadores. Mas, por outro lado, temos no filme “Não olhe para cima” um retrato fiel de como os governos constrangem a ciência a funcionarem em seu favor: silenciamento, constrangimento, manipulação. Dessa forma, a ciência, a fé, as leis, os valores, vão todos se ajoelhando frente ao capitalismo, ou por vantagens ou por ações violentas. Cada caso é um caso.
Negacionismo: um movimento contra novas estruturas de poder
O negacionismo é um projeto de poder. Hoje em dia temos um mundo dividido: pessoas se polarizando por motivos de crenças, fé, algumas contra e outras a favor da ciência, homens contra mulheres, conservadores contra contemporâneos, LGBTQIA+, as mais variadas formas de oposição e polarização. São tantas formas que eu me arrisco a dizer que existe um mecanismo por detrás de todas essas coisas: há as pessoas contra o desenvolvimento científico, político e socioeconômico trazido pelos avanços da ciência e os esforços conjuntos da sociedade. Há outras que são a favor e não veem no conservadorismo nenhuma proposta a não ser a opressão estulta e que favorece a poucos. Mas de fato, para além dessa polarização há quem passe por ela incólume: as classes governantes, que se organizam e garantem sua permanência do poder, enquanto grupos dividem-se e não têm poder para se opor às suas ações e deixarem de depositar nessas pessoas o voto.
Geralmente, o modelo norte-americano de divisão entre as pessoas pode ser, com algumas modificações, aplicado ao Brasil que possui uma distribuição diferente da massa conservadora: a maioria conservadora é branca nos EUA e no Brasil, mas lá os pobres brancos são conservadores em certa medida. Lá nos EUA, os negros precisaram optar pelo voto e procurar um lado. Aqui, os negros e mais pobres, em uma certa parcela, podem optar ora pelo conservadorismo, ora em direção ao progressismo.
Mas a nossa classe conservadora, negacionista e ignorante é, geralmente, de classe média baixa ou alta. Nossos conservadores são majoritariamente brancos ou não se veem como negros ou pardos, entendem qualquer tipo de acesso a bens e melhores condições de vida como riquezas que o socialismo ou comunismo podem tirar. A classe rica também reforça esse grupo. A maioria branca e abastada sente saudade da época em que o Brasil não era uma ditadura militar (mesmo sem ter exatamente existido nessa época) e vê perigo em qualquer coisa que não privilegie a classe média e seus supostos valores cristãos.
Dizer que o governo apoia o conservadorismo é correto. Mas, de fato, o conservador vai se sentir traído inevitavelmente, porque suas demandas não são minimamente legais, porque fere a constituição da maioria dos países, não garante a diversidade, a liberdade dos indivíduos. Por exemplo, o conservadorismo quer puxar o tapete da causa LGBTQIA+. Principal dificuldade: a diversidade sexual e de identidade de gênero é apoiada pela ciência, mesmo a tão complicada ciência médica. E por aí vai. O governo é hábil em lidar com esses grupos e passa por eles, beneficiando-se desse embate como pode. No filme, vemos uma abordagem um pouco delirante da política, seria delirante se o Brasil não existisse: o grupo político da presidente dos EUA, negacionista, mantém-se até o fim apoiando a mentira da negação do desastre iminente. Geralmente os governos abandonam barcos furados antes do tempo, a não ser que tenham planos B.
Não quero nem pensar qual é o plano B para o grupo de incompetentes que nos governa.
O fim da humanidade
Desde que a ciência descobriu nosso lugar no universo, o eixo da imaginação se deslocou da utopia para a distopia. Desde então, descobrimos que um evento cósmico de destruição é possível: cometas, asteroides, o iminente fim da nossa estrela (o Sol, mesmo que daqui a bilhões de anos). Tudo isso há de por um fim no planeta. Até lá, pensamos que a ciência poderá nos ajudar a nos defender de uma ameaça nesse nível. O filme que comento aqui tenta mostrar essa tentativa frustrada da ciência, que passa pelos interesses políticos e econômicos, esbarra nelas e cai aos pés dos seres humanos.
Há fantasia de sobra nesse filme. Por exemplo: as nações ao redor dos EUA aceitam tacitamente que eles decidam o futuro da humanidade toda e falhem em salvar o próprio país, antes de tudo. A imprensa ridiculariza a ciência de modo caricato, sendo que existe imprensa independente e redes sociais que viralizariam o fato. Na realidade alternativa do filme, a Internet não é usada para compartilhar notícias ou coisas úteis, apenas para que os haters e apoiadores se digladiem em torno de assuntos frívolos, estúpidos. A realidade é mais complexa que isso. No entanto, movimentos de massa podem ser difíceis de se combater pela Internet, como o negacionismo na época do impeachment da presidente do Brasil, em 2016. Ou mesmo o movimento de desinformação durante as eleições de 2018,, ou a campanha de difamação da urna eletrônica desde então.
O filme apresenta pouco tempo para que todos reajam e resolvam o problema: seis meses entre a descoberta do cometa e a colisão com o planeta. É uma metáfora para a urgência da solução de todo e qualquer problema global. O cometa da pandemia, desastres ambientais naturais ou provocados pelo homem, fome e desnutrição, desigualdade na distribuição de riquezas, o cometa da exploração, todos esses aerólitos atingem o planeta do mesmo modo que no filme: ninguém faz nada para evitar, por motivos de ferir os privilégios de poucos, porque alguns tantos veem seu poder ameaçado.
Enfim
Precisamos refletir mais. Não sei se esse filme é o suficiente para que queiramos mudar o mundo. Ele é uma crítica branda, não aponta soluções e trata o povo como uma massa de bilhões de idiotas que ficarão vendo o fim chegar sem fazer nada. Mas o que somos, mesmo? O que podemos fazer para mudar isso tudo? O filme não responde. Eu responderia aqui, agora, se a pergunta tivesse sido feita.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos