Na última coluna, falei de um romance que estava lendo naquela altura: “Guapa”, de Saleem Haddad. Já terminei de ler, mas alguns dos temas que o livro aborda continuaram presentes para mim desde então. Esses são os meus livros preferidos: os que mesmo depois de terminados permanecem de alguma forma ecoando dentro de mim, fazendo-me refletir e ampliando minha visão do mundo, para além do prazer, que considero essencial e insubstituível, proporcionado pela experiência da leitura.
Uma dimensão em particular do livro tem-me feito pensar bastante, ou talvez elaborar melhor ideias que eu já vinha ruminando há algum tempo. Como já havia dito da última vez, a trama do romance desenrola-se num país imaginário do Oriente Médio, no período que ficou conhecido como Primavera Árabe, no início da década de 2010. No caso específico do livro, a rebelião que eclode contra o regime autoritário que ocupa o poder há décadas é reprimida com violência, mas não totalmente sufocada. Entretanto, o movimento de oposição ao governo acaba sendo capturado por fundamentalistas religiosos que assumem sua liderança. Dessa forma, o que era inicialmente um movimento de emancipação e luta por liberdade acaba se tornando um embate entre dois tipos de autoritarismo, um de base militar, o outro de inspiração religiosa. E muitos daqueles que acreditaram no potencial revolucionário e emancipatório da revolta, entre os quais o protagonista, Rasa, sentem-se desiludidos e traídos. O que era sonho e utopia tornou-se um pesadelo amargo e com cada vez menos perspectivas.
Creio que o autor foi muito feliz no modo como retrata esse momento difícil em que vemos nossos sonhos desmoronando e aquilo que nos parecia certo, garantido e até mesmo inevitável se desfazer diante dos nossos olhos. E isso fez-me naturalmente estabelecer paralelos com a nossa atualidade, com os desafios e o desencanto que muitos de nós experimentamos hoje.
Não tenho dúvidas de que vivemos tempos sombrios. Para quem, como eu, nasceu no início de uma ditadura militar, testemunhou a volta da democracia e viveu o que parecia ser um caminho sem volta no sentido de uma sociedade mais justa, livre, igualitária e inclusiva, é muito assustador ver a rapidez com que todas as conquistas ainda tão recentes (e certamente ainda insuficientes) foram postas em xeque e parecem estar a ponto de se evaporar, quando não estão efetivamente se evaporando, de um dia para o outro. Forças destrutivas que acreditávamos ou queríamos acreditar vencidas ou pelo menos neutralizadas ressurgiram no mundo todo com intensidade e virulência. As distopias mais pessimistas parecem hoje bem mais plausíveis do que antes.
Uns poucos anos atrás, eu disse que estava me sentindo vivendo naquele momento da saga da Guerra nas Estrelas entre os episódios III e IV. O Império venceu e a Força tem que recuar e se reorganizar para poder voltar a enfrentá-lo. Essa sensação permanece comigo. E foi a ela que a leitura do romance de Saleem Haddad me reconduziu.
Eu pessoalmente não creio que a história tenha uma direção certa nem um sentido definido. O progresso, seja o que for o que cada um entenda por isso, nunca é uma certeza nem um destino seguro. Acredito em marés, correntes, fluxos e refluxos, abalos sísmicos, erosões e sedimentações, avanços e recuos. O desejo de emancipação, de liberdade e de pleno florescimento de nossa singularidade que, penso eu, vive em todos nós, está sempre encontrando resistências e obstáculos em seu caminho de realização. Às vezes prevalece. Outras vezes não.
De um modo geral, estou convencido de que as últimas décadas foram, mesmo que de modo não linear, um período de avanços importantes e inéditos na construção de um mundo menos desigual e mais justo. É claro que muito ainda restava e resta por fazer, mas a tendência era de ampliação do que chamo de campo de possibilidades na esfera individual e coletiva. Esta tendência sempre enfrentou muita oposição, mas a maré parecia estar do lado daqueles que nela acreditavam.
Isso mudou recentemente e de modo radical e aparentemente inesperado. O vento mudou de direção e a tendência agora está francamente favorável a um estreitamento cada vez maior do campo de possibilidades. E, o que considero mais triste e preocupante, um número imenso de pessoas apoia e defende esta nova tendência.
Diante disso, é natural que aqueles que, como eu e boa parte dos leitores desta coluna (espero que todos, para ser honesto), sempre acreditaram na liberdade, na igualdade e na fraternidade, se sintam perdidos e desanimados e, a cada novo desdobramento do circo de horrores em que parece ter se transformado o mundo, se pergunte, como na linda canção de Milton Nascimento e Fernando Brant: “O que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou?”
Entretanto, a mesma canção aponta-nos um caminho para sair do abatimento causado pelo luto dos nossos sonhos desfeitos:
“Falo assim sem saudade
Falo por acreditar
Se muito vale o já feito
Mais vale o que será
E o que foi feito é preciso conhecer
Para melhor prosseguir”
É importante perceber que, mesmo que os refluxos façam parte da dinâmica da história, eles não são irreversíveis. Precisamos compreender melhor quais foram os ventos e as correntes que fizeram a maré mudar de forma tão brusca, e o que favoreceu essa mudança. E precisamos também compreender o que podemos fazer para que os ventos e as correntes passem a trabalhar a nosso favor. Talvez não possamos controlar totalmente as marés. Mas podemos aprender a não naufragar e a continuar navegando, mesmo que tenhamos que buscar abrigo em alguma ilha por algum tempo.
Não estou defendendo aqui nenhum tipo de conformismo ou de resignação. Mas suspeito cada vez mais que a resistência não se reduz nem se esgota no enfrentamento direto. Eu lembro de um filme que odiei, “300”, no qual o reduzido exército espartano enfrenta o poderoso exército persa e é massacrado. Lembro de como o filme tenta retratar os espartanos como heróis viris que morrem pelo que acreditam. Sinceramente, eu os achei meio idiotas e saí do cinema muito irritado. E temo que, muitas vezes, nós todos caiamos nessa esparrela do heroísmo macho que prefere a morte à derrota. Já que estamos trabalhando com estereótipos, eu fico com a astúcia e a “malícia de toda mulher”, na expressão cunhada por Noel Rosa e Vadico, e retomada por Caetano Veloso. A verdade é que enfrentamento e astúcia são igualmente necessários e complementares para encarar os mares revoltos dos nossos tempos difíceis, e é preciso estar atento para perceber o momento adequado para cada estratégia.
O que foi feito, amigo, de tudo o que a gente sonhou? Caetano responde:
“O sonho já tinha acabado quando eu vim
E cinzas de sonho desabam sobre mim
Mil sonhos já foram sonhados quando nós
Perguntamos ao passado:
Estamos sós?
Mil sonhos serão urdidos na cidade
Na escuridão, no vazio, a amizade
A velha amizade
Esboça um país mas real
Um país mais que divino
Masculino, feminino, plural.”
Está tudo aí. Os sonhos desfeitos, o olhar para o passado, e a elaboração de novos sonhos, urdidos na escuridão e costurados pela amizade. Como dizia outro dia o Péricles, Presidente do Instituto Pró-Diversidade, não basta lutar contra o sistema, é preciso criar alternativas positivas que mostrem para as pessoas que outros mundos são possíveis. Tenho para mim que é pela ampliação dos laços afetivos que tenham como base a amizade e o acolhimento do outro em sua singularidade que conseguiremos atravessar a tormenta.
Entre o individual e o coletivo, a amizade é capaz de circunscrever antigos e novos campos de possibilidade e mantê-los vibrantes, como faróis que iluminam as águas no meio da noite.
Até a próxima!
PS – As músicas de hoje são aquelas a que me referi no texto: “O que foi feito deverá/O que foi feito de Vera”, nas vozes de Elis Regina e Milton Nascimento, e “Falou Amizade”, de e com Caetano Veloso.
Por Paulo André Lima para sua coluna
Bons momentos e quem sabe algo mais