Essa semana, nossos feed de notícias nas redes sociais foram inundados por notícias comentando a ação do IBAMA, órgão federal, contra o fazendeiro Agenor Tupinambá por causa de uma capivara de estimação, a Filó. O moço vive no Amazonas, num ambiente totalmente integrado à natureza. Sua relação com a capivara, como ele mesmo narra, teria começado porque ele havia salvado o filhote, após sua mãe ter servido de caça a indígenas. Agenor é fazendeiro, ele e sua família vivem da criação de búfalos e ele mostra a sua rotina na roça, por meio de sua conta nas redes sociais. Vlogger, Agenor mostra talento em frente às câmeras, além de um belo sorriso feito no dentista. Junto dele, uma arara, um porquinho e a famosa Filó que o segue o tempo todo.
Vamos começar pela polêmica das multas e apreensão de Filó. Em primeiro lugar, o IBAMA está correto em questionar o uso de animais silvestres, em seu ambiente, nesse tipo de exposição pela Internet. Não se trata de documentário, mas do registro de algo que, aos olhos de muitos brasileiros, parece ser de um cara branco, com acesso a bens e recursos, usando animais selvagens como bichos de estimação e ganhando dinheiro, likes e visibilidade com isso. Essa impressão perpassa todo o drama. O influencer, acostumado a documentar grandes trechos da sua rotina junto da capivara e outros bichos, espetacularizou também a ação do IBAMA, ao fiscalizar e multá-lo por supostos crimes ambientais. Mas há outro lado dessa história que o IBAMA não consegue enxergar imediatamente.
Por que supostos crimes ambientais? Porque, se por um lado o IBAMA deve fiscalizar esse tipo de ação, certamente faltou ao órgão conhecer de fato quem era Agenor Tupinambá, sua cultura e seu modo de vida. Faltou ao órgão conhecer como vivem as populações ribeirinhas num país que tem milhares de cursos d’água, habitados por povos originários, tradicionais ou por outros chegados mais recentemente. Ao taxar a conduta de Agenor, o IBAMA o localizou no mesmo lugar que muitas pessoas brancas, invasoras, aquelas que compram propriedades com reservas naturais e se apropriam da natureza e seus animais ao seu bel prazer. Agenor, certamente, foi entendido como aqueles fazendeiros ricaços com onças pintadas na sala, em coleiras.
No entanto, não quero dizer exatamente que Agenor Tupinambá, sua família e as pessoas que o apoiam na sua carreira de influencer tenham sido certos o tempo todo. Talvez tenha faltado clareza ao falar sobre si. Antes da polêmica, sua fama como vlogger chamou a atenção da imprensa. Leia um exemplo de reportagem sobre ele AQUI. Agenor se apresenta como estudante universitário de agronomia, gay e amante dos animais e, de cara, mostra que convive com animais selvagens em ambiente doméstico. No entanto, não há nenhuma reflexão quanto ao quanto isso pode ou não ser um traço cultural ribeirinho. A exposição na Internet levou ao questionamento porque nem todo mundo pode expor animais selvagens e o método de adoção e resgate de animais que ele usou não é o mais ético e justo com as espécies.
Para além disso, há a cultura ribeirinha, seus costumes e a relação do homem, mesmo de origem branca, com a natureza. Ribeirinhos são povos tradicioanis e muitas famílias, mesmo tendo chegado aos rios recentemente, agregram aos seus costumes o seu modo de vida, que inclui o alegado convívio harmonioso com outros povos, os indígenas, originários. Além disso, a relação dos ribeirinhos com a natureza é de baixo impacto ambiental, mesmo quando criam espécimes não originais, como bubalinos ou bovinos, mesmo quando praticam caça e pesca. O direito de existência desses povos deve ser mantido. Não é exatamente correto questionar Agenor e sua família porque ele é universitário, foi à cidade estudar e mostra a sua rotina rural, em contato com a natureza. Ele continua sendo ribeirinho. Mostrar isso na Internet não o invalida e nem deveria ser ilegalizado dessa maneira.
No entanto, talvez fosse mais prudente a ele e sua família terem se resguardado diante dos muitos comentários e questionamentos postados nos vídeos. Faltou a eles e às marcas e empresas que eventualmente se associaram a ele buscar conhecer meios de entender as leis ambientais e os próprios direitos como ribeirinhos. No meu ponto de vista, como espectador de Agenor e seus vídeos, talvez o ritmo frenético de sua vida digital e rural, ao mesmo tempo, não tenha deixado tempo para que ele pudesse se importar com detalhes tão importantes.
Agenor me chamou atenção por sua beleza, simpatia e espontaneidade. Ele não é o único agrogay que eu já segui nas redes. Eu me interessei especialmente por esse tipo de conteúdo. Caras gays assumidos existindo, vivendo uma rotina rural, em espaços diferentes das zonas urbanas e semiurbanas em que encontramos outros gays. Esses homens aparecem vivendo e trabalhando em espaços tradicionalmente reservados a outros: heterossexuais, masculinizados, tradicionalmente machistas. Por isso o diferencial e a atenção dada ao inlfuencer. Ele mostrava muita alegria de viver, num espaço quase que romântico, numa narrativa idílica bem construída que parecia ser muito positiva, tanto para causa LGBTQIA+ ou mesmo para mostrar as possibilidades da existência gay em novas heterotopias.
No entanto, o improviso e talvez a fama instantânea me fez estranhar a proximidade dele com o animal em questão, a capivara Filó. O contato direto parecia pernicioso, caso ela desenvolvesse carrapatos. Ele poderia pegar uma doença grave, a febre maculosa, além do que, muitos espectadores que viam seus vídeos expressaram o desejo de ter capivaras como animais de estimação nos comentários. Faltava, da parte dele e de sua assessoria, dizer que aquilo ali era possível no espaço em que ele ocupava somente, ou o que eles faziam para dirimir riscos à saúde dele e da própria capivara. Durante a polêmica, viralizaram outras denúncias de maus tratos a animais e uma foto em que supostamente Filó estaria usando xampu anticaspa junto com ele, um produto claramente inapropriado para animais. Agenor parecia, ao mesmo tempo, ingênuo ou leviano, ostentando um luxo que muitos não poderiam ter: animais selvagens de estimação. De uma hora a outra, sua vida na natureza se transformou num exemplo de má exploração e espetacularização de supostos crimes ambientais.
Enfim, o desfecho da história mostra um cenário perturbado, mas interessante. Até onde sabemos, por meio de uma vaquinha online, Agenor pagou algo próximo de dezessete mil reais de multa, ajudado por seus seguidores. A comoção levantou muitos debates inúteis, pouquíssimos abordando aspectos reais da cultura ribeirinha, da identidade cultural de Agenor ou mesmo a relação das pessoas com a natureza nesses locais. A maioria acatou o embate polarizado entre um certo e errado que reforçava ou questionava uma espécie de “direito natural” que seres humanos teriam de dominar a natureza. Outros tantos reforçavam o achincalhamento da figura artificial e mistificada do influencer: aquela pessoa que constrói uma suposta e falsa história instagramável, que faz sucesso nos Reels e no TikTok, mas que pode ser apenas efeito de edição, uma contação fabulosa de narrativas que nem sempre são reais. Por isso o abuso do imagem do animal selvagem, usado sem licença adequada.
Enfim. Filó retorna a Agenor, até que ela tenha uma destinação adequada, em parte pela comoção criada em torno da história, um entretenimento à parte no mundo das notícias que gostamos de ler ou queremos acompanhar por sadismo. Por outro lado, há o reconhecimento da integração do ribeirinho à natureza e a compreensão de que a capivara está sim, no seu habitat e sua relação com o influencer tem que ser melhor compreendida nesses termos. Mesmo estando claro que Agenor usava a capivara como animal de estimação, é interessante não se criminalizar a relação de povos tradicionais com a natureza, qualquer que seja ela. Qualquer suposto abuso deveria ser melhor analisado, compreendido, antes de ser enquadrado como real crime. O IBAMA não liberou, com essa devolução, o uso do animal para fins domésticos. Ela será levada, posteriormente, a um ambiente previamente selecionado, onde poderá viver normalmente, como qualquer outro animal de sua espécie.
No entanto, um aspecto negativo do problema não se resolve. De fato, Agenor não deve continuar a tê-la como a um cachorro ou gato, algo que é vedado por lei, não é uma conduta apropriada. Para que isso possa ficar melhor compreendido, é necessário se definir quando essa relação deve ser entendida como harmônica ou exploratória. Fica também o exemplo do desgaste causado pelo drama vivido e amplamente divulgado nas redes, inclusive pelo envolvimento pessoal e intenso da parlamentar Joana Darc, deputada estadual pelo Amazonas, do partido União Brasil. O episódio inclui vídeos, acusações, invasões e polícia no meio de tudo isso. Qual seria a conduta adequada da deputada? O que a casa legislativa do Estado do Amazonas acha da conduta de uma de suas integrantes? Ademais, qual a real relação entre ela e Agenor, pois a pressa com que tudo isso tem sido noticiado, batido no liquidificador e atirado aos feeds de notícias e sites, não permite a nós sabermos. As desventuras em série dessa história ainda incluem a inserção bizarra e profundamente catastrófica de Luísa Mell, ativista pelos direitos dos animais, acusada de modo supostamente injusto, por ter denunciado a conduta de Agenor.
Filó e Agenor acabarão se separando, de fato. Não sei se ele poderá continuar a ter uma relação especial com ela, se junto de outros da sua espécie ela perderá a memória da relação de ambos. É interessante notarmos que o suposto amor que animais sentem por nós é uma interpretação nossa de um comportamento biológico simples: animais são mansos, dóceis e carinhosos com quem os abrigam em dão alimento. Nós é que, com nossos padrões racionais e emocionais, interpretamos isso como amor. É de partir o coração pensar no quanto deve ser difícil para Agenor a perda de seu animal amado, no entanto, é mais que necessário problematizar esse aspecto do comportamento humano. Até que ponto é ético e desejável submeter tudo, até mesmo à natureza, às nossas necessidades neuróticas de atenção e afeto?
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos