“Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter”
Diferentemente de Gilberto Gil, nunca tive realmente a ilusão de que ser homem bastaria e de que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter.
Por outro lado, alimentei por anos a suspeita (há muito confirmada) de que nunca pertenceria de fato a esse “mundo masculino”.
Algum tempo atrás, quando ainda morava em Portugal, participei de uma oficina de escrita de não-ficção. Nessa ocasião, escrevi um pequeno ensaio, chamado “La vie en rose”, no qual eu contava e refletia sobre o lento processo de tomada de consciência da minha orientação sexual, ao longo da minha adolescência, até que, aos 17 anos, consegui reconhecer e admitir efetivamente para mim mesmo o meu desejo por outros homens e comecei a viver minha sexualidade de modo mais pleno.
Depois de terminar esse texto, percebi que havia tocado ali em algo mais do que a questão da sexualidade. Dei-me conta de que minha orientação sexual era apenas uma dimensão de algo mais complexo e abrangente, uma espécie de tema musical que esteve presente na minha vida desde a infância até hoje, e que talvez tenha sido um dos seus fios condutores: justamente minha relação com esse tal “mundo masculino” da canção do Gil.
E, como disse acima, essa relação sempre se caracterizou por uma sensação de não pertencimento.
Não falo aqui propriamente de identidade de gênero. Nunca me senti desconfortável ou estranho ao meu corpo. Ou, pelo menos, os desconfortos e estranhezas que senti em relação ao meu corpo nunca estiveram vinculados aos traços biológicos que fazem dele um corpo de homem. Também nunca desejei ter um “corpo de mulher” nem os traços biológicos associados a ele. Talvez inclusive essa seja uma das poucas coisas que eu nunca tenha questionado em relação a mim a mesmo.
Entretanto, sendo biologicamente um homem, sempre pareceram faltar-me os requisitos que me habilitassem a ser “um homem de verdade”. Faltavam-me a assertividade, o impulso de me impor, a presença firme e afirmativa, a força, a energia. Em uma palavra, a virilidade. E o que era “pior”, o desejo de ser viril.
Sei que não sou o único homem, independentemente de sua orientação sexual, a ter sentido o peso do “imperativo da virilidade” ao longo da vida. Mas sei também que cada um internaliza e vive as pressões sociais de modo singular. E, curiosamente, um pouco da mesma maneira como, aos 17 anos, a consciência da minha orientação sexual surgiu para mim de forma inequívoca e pareceu-me tão óbvia que eu tinha dificuldade de entender como eu não tinha enxergado as coisas com tanta clareza antes, eu percebi, ao escrever sobre esse episódio, que venho passando uma boa parte da minha vida tentando acertar minhas contas com esse imperativo da virilidade. E que, de um jeito ou de outro, esse tema sempre volta a me assombrar.
Quando falo em imperativo da virilidade, refiro-me, em primeiro lugar, à exigência de que os homens sejam viris, no sentido mais amplo da palavra, e de que estejam o tempo todo pondo à prova e reafirmando sua virilidade.
Mas penso também numa espécie de onipresença da virilidade no nosso mundo, não somente como alicerce do “mundo masculino”, mas também como conceito que informa nossa maneira de entender nossa sociedade fundada na dominação masculina, para usar a expressão consagrada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Naturalizada como “coisa de homem” e associada ao exercício da força e do poder, a virilidade legitima e contribui para perpetuar um estado de coisas que não pode ser questionado porque, justamente, obedece à ordem natural do mundo como ele é.
É deste mundo masculino que eu sempre me senti de certa forma excluído.
Durante muitos anos, eu naturalmente me culpei por isso. Devia com certeza ter algum defeito de fabricação que me impedia de aderir de forma plena a esse universo de valores, que eu não conseguia levar realmente a sério. E isso me doía, talvez nem tanto (dou-me conta hoje) porque eu quisesse participar dele, mas porque eu percebia que os outros à minha volta percebiam minha incapacidade e não conseguiam aceitá-la. Sentia-me julgado e condenado. E, no fundo, sabia que, dentro daquela lógica, os outros não estavam errados. O problema é que a lógica deles estava equivocada ou era-me estranha. Mas ainda não tinha condições de elaborar isso com clareza.
De qualquer forma, passou-se muito tempo até que eu começasse a me sentir mais confortável dentro do que via como uma incapacidade estrutural. Aos poucos, sem deixar de me esforçar, sempre meio em vão, para disfarçar esse “defeito”, fui encontrando outras referências que me fizeram sentir menos sozinho. A canção do Gil foi uma delas, figuras como o próprio Gil, o Caetano, o Ney, entre outros, foram me mostrando que o imperativo da virilidade não precisa ser absoluto e que existem outras possibilidades de ser e de estar no mundo. Até chegar à conclusão revolucionária de que o mundo não precisa necessariamente se organizar em torno do imperativo da virilidade.
Para chegar nesse ponto, claro, tive também a sorte de ter tido encontros afetivos nos quais me senti acolhido no meu jeito de ser. Pessoas e ambientes que me fizeram sentir validado na minha experiência singular.
Continuo olhando com estranheza o mundo à minha volta, dominado pelo imperativo da virilidade. Hoje sei que, por uma questão de sobrevivência, tenho que às vezes jogar o jogo, mesmo sem acreditar muito nele. Há ocasiões em que isso me custa mais do que em outras. Há ocasiões em que até consigo disfarçar bem.
Mas é curioso como, ainda hoje, falar sobre isso mexe comigo. Desde que comecei a escrever esse texto, tenho estado agitado por dentro. Parece que meu corpo reage organicamente a esse tema e, depois de escrever e reesecrever, fico com a sensação de que estou andando em círculos e não consegui chegar ao ponto a que realmente queria chegar. E que, para ser honesto, não sei bem qual é. Mas sinto também que devo prosseguir. Há um caminho a ser trilhado e esse texto faz parte dele, por mais incompleto e confuso que ele possa parecer, pelo menos para mim.
Percebo agora, por exemplo, que a música do Gil, que foi tão importante para mim no seu momento e que continuo a admirar esteticamente, hoje me provoca mais do que me consola. Porque, no fundo, incomoda-me cada vez mais a contraposição do masculino ao feminino como polos irreconciliáveis, que me soa, justamente, como um dos efeitos perversos do imperativo da virilidade. Não se trata, evidentemente, de negar as diferenças entre os seres, mas sim de organizar essas diferenças de acordo com uma outra lógica, a ser ainda inventada talvez, que não passe necessariamente pelo jogo da dominação e do poder.
Talvez minha utopia maior seja a de que a salvação do mundo venha, não de um super-homem agindo “por causa da mulher”, e sim de criaturas pós binarismo de gênero e sem superpoderes que compreendam a dinâmica do yang e do yin com base na sua complementaridade e na multiplicidade de suas manifestações singulares.
Até a próxima!
PS – A seleção de músicas de hoje tinha que incluir, é claro, “Super Homem (A Canção)”, nessa linda versão ao vivo com Gilberto Gil e Caetano Veloso. Para complementar, escolhi “Mal Necessário”, com Ney Matogrosso, e “Gita”, com Rita Lee.
Uma resposta
Eu diria que o que mais faz um cisgenero pensar na virilidade é sentir ser penetrado mesmo que eu perceba a ereção dele e queira, mas ser conduzido por homem, ainda hoje, parece realizar mais o homem que penetra!