O capitalismo e a identidade LGBTQIAP+

Como falar do orgulho LGBTQIAP+ sem falar de sexo e gênero? Para isso, é necessário ressuscitar o debate proposto por teóricos como Judith Butler. O gênero (masculino e feminino) surge como resposta ao determinismo sexual, de suposta origem biológica, pelo qual se define os destinos dos seres em sociedade. Ser masculino e feminino é algo social. A noção de gênero surge com a noção do novo ser humano: a sexualidade é um papel coletivo, que não precisa, exatamente, coincidir com os papéis biológicos sexuais.

Para além de qualqur discussão teórica, na prática, a sociedade, seus saberes e poderes querem fazer acreditar que ser masculino e feminino é algo natural, normal e desejável, mesmo num século como o nosso, marcado pela cientificidade e uma cultura baseada em conhecimentos construídos a partir de um regime positivo de verdade. O gay, a lésbica, a pessoa trans havia nascido com defeito. Isso, no entanto, não exclui, até hoje, as formas antigas e até medievais de entender a sexualidade humana. Ou seja, o mesmo indivíduo LGBTQIAP+ geralmente é duplamente excluído por religiões e crenças supostamente científicas. Ou seja, ser diferente é pecaminoso, doentio e por isso merece duplamente a exclusão.

O século atual, por sua vez, marca o capitalismo como forma dominante de economia  global e piloto das microeconomias que organizam o uso dos recursos naturais e humanos, inclusive o próprio corpo dos indivíduos em sociedade. Aparentemente, depois dos anos de 1970, os estudos sobre a diversidade humana se elevaram a um patamar em que as ciências humanas de inspiração pós-estruturalista e a medicina contemporânea passaram a conjugar esforços para diminuir a carga de adoecimento que havia sobre qualquer forma de expressão da diversidade.

Isso fez que, em 1990, a OMS retirasse a homossexualidade do catálogo de doenças conhecidas, “libertando” milhões de indivíduos do mundo todo do limbo da anomalia. Homossexualidade passa a ser um fator de diversidade humana, pelo menos para o clube dos médicos menos preconceituosos. Só que não é somente ser “gay”. Trata-se da diversidade sexual humana, expressa pela sigla LGBTQIAP+, que inclui o comportamento homossexual, mas não somente ele. Por outro lado, trata-se de questionar as dinâmicas culturais de gênero e exclusão, que ainda se referem ao machismo e às formas de dominação mais comuns sobre mulheres e LGBTQIAP+. O gênero tem a ver com dominação. E os significados dessa dominação se arraigam em formas de poder que se perdem na aurora dos tempos da sociedade. Questionar isso não parece ser tão fácil.

A identidade do que seja ser gay, lésbica, pessoa trans, bissexual etc. não nasce da essência humana, mas de relações de poder permeadas pelo capitalismo. Quando radicais socialistas do século passado afirmavam que a expressão de gênero e sexualidade humanas eram engodos capitalistas, eles estavam metade certos, mas metade errados por não perceberem que mesmo modelos “socialistas” ou quais outras formas de organização social também produzem relações de poder e expressões de gêneros muito semelhantes. O que eles enxergavam, no entanto, era a tentativa bem-sucedida que o capitalismo tinha de enredar todos na mesma malha de poderes e relações, de tal forma que hoje, sem medo de dizer qualquer mentira, eu posso afirmar que o capitalismo é sim o produtor de nossa identidade e formas de expressão.

Para ser o mais resumido o possível, porque isso é um assunto para um livro, não apenas um artigo de opinião. A ideia do que seja ser gay, lésbica etc. só surge num mundo em que os conceitos sobre a humanidade transitam de uma noção religiosa, mística e filosófica de essência para outra de identidade socialmente construída. Ser LGBTQIAP+, portanto, só é possível quando as ideias e verdades mudam o suficiente para esses seres sejam visibilizados e nomeados, mesmo que em condição de anomalia e desfavor. Em outras culturas, o desejo sexual entre pessoas de gônadas semelhantes é entendido de diversas formas, também compreendidas, hodiernamente, como diversidade sexual, mas nunca com as mesmas raízes identitárias.

Mas qual o papel do capitalismo nisso tudo? Nunca um papel direto, intencional. O capitalismo nunca buscou libertar o homem do saber religioso para maximizar sua produtividade econômica, ao contrário. Dada a imensa fonte de capital estagnado sob o poder da religião ou mesmo sob influência direta dela, o capitalismo contornou o cristianismo na sua fase mercantilista, apoiando-se no protestantismo, ao mesmo tempo em que minava as forças do catolicismo romano, até que, depois das revoluções burguesas, o catolicismo e o protestantismo sairam de sua frente, ao mesmo tempo em que as nações passaram a depender de saberes positivos para continuarem a se governar. Isso deu margem para o surgimento de posturas científicas a respeito da sexualidade em oposição à noção de sexo como algo essencial. Primeiramente, a ideia era continuar a justificar os preconceitos religiosos. O pecado vira anomalia, doença até mesmo crime. Depois, a crítica aos modelos científicos que progridem com o próprio patrocínio capitalista passam a mostrar outros vieses. A anormalidade passa a ser um efeito de pontos de vista socialmente construídos que podem ser desconstruídos.

Por isso a sigla cresce. Porque, sob muitos aspectos, a homossexualidade deixa de ser a única forma de expressão de gênero e sexualidade passa a concorrer com outras formas de expressão do corpo e da mente. O gênero binário (masculino/feminino) passa a não ter mais todo o sentido, depois de ter questionado a essência do sexo binário. Na verdade, tanto gênero quanto o sexo (a função biológica) só fazem sentido dentro de um contexto social em que eles produzem verdades, relações de poder e corpos úteis. Se esse contexto social muda, muda-se tudo. Por esse ponto de vista, não há identidade eterna e essencial. Ninguém nasce nada, nem mesmo LGBTQIAP+. As pessoas se tornam assim dentro de contextos sociais em que elas podem ser condizentes ou divergentes com padrões socialmente estabelecidos.

menina bandeira

Concluindo: uma reflexão importante é necessária, embora a partir dela se faça necessário outro e mais outro e tantos mais textos sobre o assunto: se nossa identidade nasce de transformações socioeconômicas capitalistas, qual o papel do capitalismo na manutenção atual delas? Eu prefiro não responder de forma simples Mas quero fazer uma importante reflexão. Vamos pensar no quanto o capitalismo é determinante a partir de um dado concreto. Até hoje, tudo o que chega para mim sobre o MÊS DA DIVERSIDADE (junho) é majoritariamente comercial. Pouco se reflete sobre a escolha do mês, sobre a bataha de Stonewall, sobre a importância desse ato. Há pouca importância também a outras realidades que surgem a partir de novas formas de pensar a sexualidade humana e tudo mais. Como é a identidade LGBTQIAP+ que surge nas periferias do capitalismo, notoriamente centro e sulamericanas, africanas e asiáticas? Como é a emancipação de gays que jamais passaram ou passarão por batalhas como a de Stonewall, pois viveram na zona rural ou em lugares distantes de grandes centros? Como é a vivência de gays, lésbicas e bissexuais na imensidão rural do Brasil? Nas comunidades tribais indígenas e de outros povos originários? Como é ser gay ou trans no Serenguetti africano, ou em Manila, nas Filipinas ou ainda em Bangcoc na Tailândia? Temos que acreditar sempre numa visão filtrada por um canal de TV norte-americano? O quanto devemos levar a sério o que vemos no TikTok ou no Kwai sobre isso tudo? De qualquer forma, tudo isso nos chega por beneplácito do capitalismo, que nos rege e domina e diz, inclusive, o que devemos e como devemos ser. Para além de querermos negar isso tudo, talvez queiramos também ressiginficar e fazer com o capitalismo o que ele quer fazer conosco: ressignificar, reconstruir, criticar e remodelar regimes de verdade.

Amém?

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: dupla exposição com imagens de Steve Buissinne e Alexander Grey por Pixabay

 

 

 

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