O assunto vai muito além da violência física

Justa Causas

Já há um tempo pensava em refletir sobre o curta-metragem “Justa Causa”, de 2017, que tem direção de Carol Silvério. Com apenas 2 minutos de duração, o filme nos diz muito mais do que somente as imagens mostram. A própria sinopse já diz o que, para nós homens, é quase impossível de compreender. “Sobre as Justas Causas tão injustas, sobre as causas mais que justas das mulheres, um curta sobre mulheres e para mulheres”.

Com cinco sequências chocantes, com uma única atriz e sem qualquer diálogo, “Justa Causa” impacta. E ele impacta porque tem como único objetivo impactar. Como disse no início do texto: já há um tempo pensava em refletir sobre este filme na coluna A Vida É Curta. O grande problema em escrever sobre “Justa Causa” vem justamente da nossa incapacidade de compreensão do que é a violência contra a mulher. Sei que é importante combater o machismo e a misoginia. Também sei que os casos de violência contra as mulheres devem ser rigorosamente punidos. Mas eu me sentia como um impostor para querer falar sobre um filme que mostra o quão doloroso é para uma mulher sofrer qualquer tipo de violência, seja física, psicológica, emocional ou sexual. Embora quisesse muito falar sobre o filme, sentia que só quem poderia falar sobre o assunto com mais profundidade, seriam mulheres.

E por que eu decidi falar de “Justa Causa” somente agora? Não que os outros casos de violência contra mulheres veiculados pela imprensa não tenham me afetado, me deixado revoltado ou me impactado. Mas, no alto dos meus 43 anos, nunca senti tanta tristeza como o caso da atriz Klara Castanho. Nunca um caso havia me chocado tanto, não só pela violência sexual da qual ela foi vítima, mas principalmente em como “jornalistas” fofoqueiros exploraram a situação. E pior, em como uma outra mulher, tratou a questão com tanto desprezo, perversidade e monstruosidade.

O que vinha sendo tratado de forma discreta foi escancarado porcamente por pessoas ruins, sem escrúpulos e sem qualquer sentimento de empatia pela vítima. Eu li a carta publicada pela Klara Castanho e chorei. Eu pensei em como essa menina deve estar sofrendo e tudo o que deve estar passando pela cabeça dela. Imagino que não deve estar sendo nada fácil. Embora, muitas pessoas da área artística tenham se manifestado com o seu apoio e a solidariedade, um tanto de anônimos está questionando o porquê do nome do agressor não vir à tona, pondo em dúvida a violência sexual sofrida por ela, apenas para passar pano para a “barraqueira de internet” que, depois das bobagens faladas, não só não pediu desculpas, como chamou as pessoas que a repreenderam de “militância lacradora”. Não é “militância lacradora”, mas pessoas que exigem respeito à dor de uma menina que foi vítima de um crime e decidiu tomar uma decisão de se resguardar e resguardar também a criança, fruto do estupro, e que não tem culpa do que houve. A intenção era garantir que essa criança fosse adotada por pessoas que pudessem lhe dar amor e carinho, sem precisar carregar o peso de ser fruto de um ato violento. Mas como urubus, os “jornalistas” fuxiqueiros e a “treteira de internet” se lixaram para isso.

Talvez a minha decisão de deixar para falar sobre “Justa Causa” para depois tenha sido acertada. Afinal, eu senti tristeza, angústia, dor, com a história que veio à tona no último fim de semana de junho de 2022. Ao assistir novamente “Justa Causa”, eu senti o que não havia sentido das outras vezes.

Num período onde os discursos de ódio ganham espaço, eu aprendi muito com este caso. Não que eu não me indignasse com casos de violência contra mulheres; a minha sogra é militante e uma das fundadoras da União Brasileira de Mulheres, e nós sempre conversamos sobre o assunto. Talvez, a pancada tenha me acertado com muito mais força desta vez, justamente pela revolta que tive com as pessoas carniceiras e oportunistas que procuraram levar vantagem com a tragédia alheia.

“Justa Causa” é um curta que tem o tempo perfeitamente certeiro. Foi esse o tempo exato que a Carol Silvério precisou para esfregar na nossa cara os traumas que o assédio e a violência podem causar para uma mulher. Traumas que podem durar uma vida inteira.

A trilha sonora ajuda a construir com perfeição as sequências que se seguem aos dias da semana narrados na trama. A fotografia em preto e branco fazem com que cada sequência seja ainda mais pesada e desconfortável.

As cinco curtíssimas sequências, quebrando a quarta parede o tempo todo, mostra ao espectador o que muitas pessoas preferem ignorar, ou então, minimizar. A vítima é vítima; o agressor é agressor. Com uma direção e atuação perfeita, “Justa Causa” explicita o que as mulheres já conhecem e o que os homens têm a obrigação de procurar compreender e combater.

O telefone para denúncias de violência doméstica e contra a mulher é o 180 em todo Brasil.

FICHA TÉCNICA

  • Justa Causa
  • Gênero: Drama
  • Ano: 2017
  • País: Brasil
  • Direção e roteiro: Carol Silvério
  • Duração: 2 minutos

Uma resposta

  1. Caro Marcelo…
    Tratou o assunto de forma certeira, Cirúrgico . Mas principalmente sem sensacionalismo…
    Infelizmente vivemos um momento que os defensores da moral e bons costumes, aqueles que pregam “justiça com as próprias mãos”, são os mesmos que arrotam preconceitos, são os mesmos que cometem diariamente crimes domésticos, são os mesmos que criminalizam aborto, mas não oferecem ajuda as mesmas, quando as encontram desmaiadas de fome pelas calçadas das metrópoles de nossas capitais.

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