O arco-íris é brilhante, um jogo caleidoscópico de luz e cor, e por essa razão, é difícil imaginar que embaixo dele há coisas terríveis. Abaixo do arco-íris parece que encontramos somente a alegria, o amor e a diversão. Seria verdade se não houvesse dor, sofrimento e relacionamentos abusivos. E qual o motivo de não discutirmos isso entre nós?
A resposta talvez se deva pela crença de que, por termos relacionamentos tão marginalizados a última coisa a ser pensada é que pudéssemos discutir o abuso, mas é exatamente por sermos marginalizados em nossos afetos que o relacionamento abusivo entre casais homotransafetivos precisa vir à tona.
Quando ouvimos falar de relacionamentos abusivos pensamos logo em relações entre pessoas cis e heterossexuais, geralmente um homem cis hétero abusando física, verbal, sexual, patrimonial, moral e psicologicamente de uma mulher cis-hétero. Embora as estatísticas estejam ai para mostrar que infelizmente essa é uma grande parcela das vítimas, por outro lado, o mito heteronormativo esconde os caminhos percorridos pela violência patriarcal que também permeiam as cores de nossas relações.
É preciso entender que tanto pessoas não-LGBT como pessoas LGBT dividem um mesmo tecido social que engendra comportamentos, perspectivas, expectativas etc. desde o nosso berço. O fato de muitos sujeitos romperem com as categorias binárias de gênero e sexualidade isso não é uma promessa de emancipação das relações herdadas, e que como teias e fios inconscientes nos movem como marionetes de dentro para fora, sendo necessária muita desconstrução por parte da sociedade e dos indivíduos para serem desatados. Portanto, o discurso sempre estará para além da prática.
Ao dizer isso, pretendo levantar o véu do ideário social que mostra LGBTQIA+ sempre felizes em seus relacionamentos ou vivendo arrebatadoras paixões que enfrentam tudo, levantando a questão de que não basta ser LGBT para ser uma pessoa desconstruída.
A primeira coisa que precisa ser entendida é que os relacionamentos abusivos não é algo singular, individual, e que existe por si mesmo. Até a década de 1970 se via as relações abusivas entre casais como um problema entre eles, algo que a hipócrita sociedade burguesa não deveria intervir. Tanto que os termos violência conjugal e crime passional estão ai para provar. Com isso se construiu o imaginário de que as relações abusivas são produto sempre daquele casal, quando na verdade essas relações respondem a um contexto social e histórico maior em que relações de poder (recomendo a leitura de Michel Foucault) e construção binária rígida de gênero respondem.
As estruturas de formação do sujeito, baseada no gênero binário masculino = homem = macho versus feminino = mulher = fêmea e na superioridade do primeiro sobre o segundo, já estabelecem daí estruturas abusivas, como um contrato ou pacto social silencioso entre homens e mulheres, nos mais diversos âmbitos.
É preciso entender que muitos LGBT não romperam com as construções binárias de gênero, até mesmo homens e mulheres trans procuram muitas vezes corresponder tão veemente a uma performance do que é ser homem ou mulher naquela sociedade/cultura, que acabam comprando para si, até mesmo vícios machistas e patriarcais. É preciso lembrar que, embora se rompa com a estrutura do “Cis-tema” ele ainda existe e organiza todas as instituições, e relacionamentos amorosos são instituições. No entanto, ser LGBT e assumir isso é se colocar a margem, porém a margem não é fora, mas o refugo, o não dito, o excluído que alimenta o sentimento de pertença mesmo que isso custe outras invenções possíveis de relação.
Muitos LGBT já vêm de relações abusivas anteriores, lá no seio familiar, mães, pais, tios, irmãos, avós e avôs já os violentam, sobretudo moral e psicologicamente, que dentro do ciclo abusivo é o pior tipo de violência que uma pessoa pode sofrer, já que deixam marcas indeléveis que somente com muito custo e horas de intervenção profissional podem ser resignificadas.
Quando esses LGBT conseguem buscar abrigo afetivo em outros terrenos muitas vezes esses laços já estão tortos dentro de si pela violência anterior. O afeto negado encontra vazão e satisfação nos braços de outra figura de poder: o namorado ou namorada.
É comum pelos atritos iniciais entre sua família que não aceita a pessoa LGBT, que as relações entre nós já começa como uma mistura de namoro e casamento, entre o eu e o nós, quase como um caminho de desespero e amparo, em que o elemento ambivalente que sustenta a maioria das relações abusivas seja ainda maior.
O sujeito LGBT que ali está vê no outro da relação o seu mundo, sua razão de estar vivo, o que o torna uma presa fácil para o abusador.
Na maioria das vezes aquela é a única pessoa na qual de fato ele tem, já que é preciso lembrar que ser assumido para a família não significa ser assumido para a sociedade, o que torna ainda indivisível os problemas da relação.
Toda relação abusiva é aquela em que predomina o excesso de poder sobre o outro.
As relações tal qual como já apresentada aqui estabelecem relações de poder baseadas na lógica binária de gênero. É comum, sobretudo em relações entre lésbicas e gays que um é ativo e o outro passivo sexualmente, ou em uma relação heterossexual entre mulheres trans com homens cis, em que esse seja o ativo nas relações sexuais, que o elemento ativo por se considerar o homem exerça abuso sobre o passivo. Portanto, o que vemos ai é que embora se mude os personagens o roteiro é o mesmo: o homem é o soberano, e a mulher sua serviçal.
Por essa razão, é importante salientar que os sinais do abuso já podem ser encontrados no início da relação em que o poder sobre o outro é visto como cuidado e zelo. Sem ainda mencionarmos a questão de uma pré-fragilidade que pessoas LGBTQIA+ já carregam. Mas somente após um ato violento é que o abuso realmente se revela.
Todo abusador é esperto, e ele faz com que a vítima se responsabilize pelas atitudes violentas dele, criando uma complexa teia emocional e psicológica em que a baixa autoestima da vítima já está presente nela. Isso nos faz entender que antes de uma violência física temos uma violência psicológica, que nada mais é que o terreno em que se prepara a agressão. Essa fragilidade psíquica é comum entre pessoas LGBT, tanto que os índices de depressão e suicídio são muito altos entre a nossa população.
Esse mecanismo de violência que pode iniciar com ciúme e possessividade excessiva, controle das decisões e ações do parceiro/a, isolar o parceiro/a do convívio com amigos, sociedade e familiares, ser violento quando contrariado e obrigar o parceiro a ter relações sexuais, são caminhos para enfraquecer a vítima, que também vai vivendo um sentimento de profunda ambivalência com o agressor (amor e ódio, dependência e vontade de sumir) que assim mantém o controle da situação. Isso cria uma codependência da vítima, fazendo com que cada vez mais ela não encontre saída. Sem ainda mencionarmos a homotransfobia internalizada entre ambos que podem colaborar para o aumento do sentimento de medo, vergonha e raiva. A violência moral e psicológica vai causando tamanha exaustão na vítima que ela se sente paralisada, minando pouco a pouco a sua capacidade de se ver quanto sujeito, passando a ser mero objeto da vontade do outro. Essas consequências vão destruindo todas as possibilidades de realização de vida para a vítima.
Embora muito tenha se falado da denúncia como um caminho de romper com esse ciclo de violência, necessário, claro, mas que não é eficaz por si só sem uma rede de apoio emocional e profissional para a vítima. Assim sendo, é essencial que se você LGBT está vivendo uma relação abusiva que procure apoio e denuncie, medidas de proteção podem e devem ser acionadas.
Para ver mais textos de Sérgio Lourenço, confira sua coluna Queer-se.
Foto de cottonbro no Pexels
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Uma resposta
Uaaaauu que showww esse texto…