Este texto na verdade nasce de outro que eu já escrevi. Uma crônica-ensaio enorme de dez páginas sobre esse tema que escrevi para um livro ainda não publicado. Enfim, porque esse é um site de família, eu quero me derramar em desabafo com vocês, meus poucos leitores, tentando economizar na grosseria e na linguagem vulgar. E meu desabafo é esse: por que as pessoas ainda ofendem umas às outras mandando tomar naquele lugar?
Não é uma pergunta retórica, eu estou falando sério. Mas, de fato, eu tenho muitas respostas. Talvez vocês queiram lê-las antes de me responder aquilo que pensam, eu adoraria que comentassem dizendo o que pensam, na verdade. Mas deixa eu me antecipar. Isso é uma tarefa nossa, dos escritores, trabalhar com a antecipação. Pois bem. Tomar naquele lugar ainda é sinônimo, pelo menos na prática, de algo abominável. Mesmo que não seja. Eu sei que é algo grave e pesado. Talvez para provocar um tipo de riso nervoso e reflexivo entre colegas de trabalho, eu passei a responder a essas ofensas, geralmente ditas em tom de brincadeira, com outra brincadeira constrangedora. Quando me mandam tomar naquele lugar eu digo que não adianta querer agradar, depois de ofender. Geralmente tudo vira risada, ou ficam sem-graça, e por fim, pensam duas vezes antes de falarem isso para mim. Ainda assim, é de se pensar por que há esse tom de abominação em torno do ânus e do sexo entre dois homens.
A origem disso está na moral judaico-cristã ocidental. Fácil de resumir, não é? Mas não é algo simples. O judaísmo bíblico, ou pelo menos o que podemos interpretar como verdadeiramente judaico a partir da leitura do Antigo Testamento, restringe muito a prática sexual, inibe os prazeres corporais. O sexo não é exatamente um tabu, mas não ocupa uma posição central na vida dos israelitas, pelas narrativas tradicionais. Sim, estou falando de um livro escrito na Idade dos Metais, que as pessoas ainda leem e acreditam ser verdade, por incrível que pareça. Nada daquela época serve para hoje em dia, mas infelizmente, por aqui é mais influente que a Constituição Brasileira. Voltando ao assunto, o Antigo Testamento possui narrativas em que prática sexuais como a prostituição, o sexo livre, casual ou ritualístico era proibido, punível como pena de morte, até. Os judeus, dessa forma, mostravam uma pureza de comportamento incomum nos povos ao seu redor e seu moralismo teria sido uma experiência única de pureza, se de fato, tivesse sido obedecido à risca. Certamente que não, a própria Bíblia narra que os muitos pecados dos israelitas incluíam a sodomia, uma prática que retoma ao Gênesis, a uma narrativa em que os companheiros angelicais de Ló foram ameaçados e assediados pelos homens de Sodoma, que queriam “se deitar” com eles, pelo que o deus dos judeus teria destruído a cidade.
De fato, essa condenação é emblemática, mas não é o motivo da condenação do sexo entre homens ou entre pessoas do mesmo sexo ou gênero. Os motivos podem sim, ser religiosos, pois as práticas de adoração a várias divindades incluíam rituais sexuais. Mas claramente eram estratégias de controle do corpo por meio do medo do sagrado. Essas pessoas temiam o uso do corpo em liberdade, o que poderia comprometer a difícil economia do uso do corpo para o trabalho e reprodução, numa época em que a expectativa média de vida era de 35 anos de idade.
O surgimento do cristianismo trouxe novas ideias à moral judaica, avessa à sensualidade e ao sexo livre. Notem que até agora eu não disse a palavra gay, ou ainda homossexual. A Bíblia não fala sobre isso, pelo motivo mais claro o possível. Não existia homossexualidade naquela época. Não existia essa identidade e ninguém poderia, em hipótese alguma, assumir algum papel de identidade ou gênero que não fosse o que era proposto pela sociedade, sob pena de ser uma espécie de abominação pecaminosa. E o pecado eclipsa a possibilidade de se compreender o comportamento humano por outro viés, porque ele impede a reflexão e a investigação. Provavelmente deveria haver pessoas que tentavam expressar seu amor, seu desejo ou até mesmo sua forma de ser e eram impedidas pela noção de que qualquer coisa que não fosse Adão e Eva era pecado contumaz. Então isso barrou a existência de pessoas homossexuais ou transexuais por um bom tempo, mesmo que indícios desse comportamento possam ter existido. Não havia o lugar, a posição-sujeito adequada para essas pessoas se encontrarem nessas sociedades.
O cristianismo não melhorou a moral judaica. Nem mesmo depois de Cristo perdoar, no papel, prostitutas. Elas, os ladrões e coletores de impostos, corruptos e imorais, eram o pior da sociedade da época e, pelo que dizem os evangelhos, nas suas narrativas confusas e incoerentes, Jesus se sentava para comer com eles, e tinha muitos deles como seus discípulos. Portanto, haveria uma predisposição, no cristianismo, a perdoar o comportamento sexual da prostituta? Não, mesmo que Cristo a tenha perdoado, ninguém mais repetiu esse ato. Paulo, o apóstolo que resolveu debater, esmiuçar e replicar a mensagem de Cristo, as condenou como devassas, depravadas, na sua lista infame de pecadores escrita na sua epístola aos Coríntios, reforçando o que teria dito e Romanos sobre práticas antinaturais de sexo. Para as Igrejas cristãs, com exceção das inclusivas, as práticas antinaturais são todas as que não são dedicadas à reprodução. Alguns fundamentalistas são opostos à ideia de se fazer sexo por prazer. Mas Cristo não trouxe só esse cavalo de Tróia das ideias do discípulo amado dele. O cristianismo não é uma crença que surgira do oco da bananeira, mas uma construção complexa que incluía uma série de ideias que circulavam pela Palestina àquela época. Ponto de passagem entre o oriente e o ocidente, as civilizações grega, romana, egípcia e mesopotâmica se relacionaram por meio de influência ou domínio. Os reinos ali presentes, antes e depois de Israel e Judá, deixaram sua marca. A riqueza do local não vinha de águas, florestas ou ouro, mas do domínio das rotas comerciais, dos pontos de passagem, portos por onde caravanas iam e vinham apinhadas de mercadorias muito valiosas. Assim como pessoas e mercadorias, ideias vindas de todos os lados se mesclavam com as crenças existentes.
O judaísmo da época helenística, na qual Jesus Cristo nasceu, já havia sofrido muitas mutações e influências. O cristianismo consolidou a aproximação do estoicismo grego, do zoroastrismo, da Pérsia, dos mistérios iniciáticos egípcios e gregos, da religiosidade romana e sua moralidade incomum com as ideias vindas de um suposto messias que tomou para si uma antiga profecia da época em que os judeus passaram a ser saqueados e sitiados por povos mesopotâmicos. De tudo isso, o mais importante disso é a técnica da confissão, o discipulado e a instituição da virgindade e do celibato como formas de existência que agradam a Deus. O cristão é, antes de tudo, um abnegado, um sujeito quase sem corpo, que o entrega à escravidão e à morte, se preciso. Que encontra a paz no celibato e na vida monástica separada do mundo. Cristo é o salvador dos ermitões, dos pregadores do deserto, dos que querem imitar a ele e a seus discípulos, especialmente à sua mãe, a Virgem Maria.
O sexo passa, então, a ser compreendido sob uma nova camada de interdições, tendo espaço no casamento cristão, abençoado por um padre. Tanto o casamento quanto a devoção se tornaram elementos muito importantes de civilização, quando o cristianismo se tornou um instrumento de dominação e poder do Império Romano, de maneira deliberada. Gestava-se ali, a Idade Média, a época em que a sensualidade era punível com morte. Essa época tem mais conexões coma modernidade do que a antiguidade. O sexo entre homens ou entre mulheres era totalmente interditado. Mas não apenas isso. O Fuero de Cuenca, um compilado de leis medievais ibéricas do século doze condenava com pena de morte dizer que tinha feito sexo anal com outro homem. Isso mesmo. Bastava dizer. Claro que ser pego no flagrante também era crime punível do mesmo modo. Caso fosse verdade, dois morreriam. Caso um deles conseguisse provar a inocência (o ônus da prova era do acusado), o outro morreria. A pena era ser queimado vivo.
Mas, de fato, o número de queimados foi pequeno o suficiente para que não provocasse pânico entre os praticantes do sexo entre homens. De fato, antes desse século, não havia muita preocupação com o amor entre iguais nem na igreja, nem fora dela. Mesmo que houvesse as condenações religiosas. E provavelmente nessa época, nesse século, mandar tomar naquele lugar passou a ser um xingamento potencialmente ameaçador. E esse terror tinha razão de ser. Relações entre homens eram comuns entre os árabes, que estabeleceram no local um próspero reinado até esse século. Assim, homens andaluzes tinham o exemplo de naturalidade de práticas comuns entre os mais abastados. Havia, inclusive, uma classe trabalhadora do sexo que cobrava caro por seus serviços, até mesmo haréns masculinos, mantidos pelos governantes.
O cristianismo veio para condenar e expurgar isso. E dessa península, exatamente da costa oeste, virada para o Atlântico, de lá é que vieram os nossos colonizadores, depois de lutarem bravamente contra “mouros” que eram hereges e, também, sodomitas. Por isso hoje ainda há o medo, o pejo, a vergonha, não em torno do que se sente por meio dessa parte do corpo, mas por causa do medo de uma condenação que já foi de morte. E ainda é para muitos gays pelo mundo a fora, quer façam esse tipo de sexo ou não. Ser gay é algo que ainda se paga com a vida.
Quando eu me conheci como eu sou, nada disso eu sabia. Mas tinha desejos e vontades. Eu aprendi a desejar vivendo em sociedade e convivendo com pessoas como eu. Pude ter experiências sexuais que me trouxeram ao conhecimento do sexo em si. A primeira coisa que eu pude constatar: não há nada de ruim no sexo entre dois homens, se tudo for feito com respeito e certas precauções comuns a quaisquer práticas sexuais. Tomar naquele lugar não é ruim para quem toma, desde que seja do desejo de quem toma. Mandar alguém tomar não é exatamente ofensivo. Não precisa ser, pelo menos. Mas ainda é. Talvez ainda se tema a morte. Ou a condenação no inferno dos cristãos.
Eu aposto que muitos temem gostar disso de maneira intensa.
E irreversível.
Para ver mais textos de Alex Mendes, acesse sua coluna O Poder Que Queremos
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