Finalmente começou o mês da diversidade. Isso significa muito, porque inegavelmente começa um período de extrema visibilidade para a comunidade LGBTQIAPN+. Algo totalmente impensável algumas décadas atrás. As coisas mudaram a um ponto que a diversidade se tornou uma pauta inevitável, indiscutível, inegável. Todos temos que, de alguma forma, encarar a temática, uma hora ou outra. Algo mudou no mundo. Talvez devêssemos perguntar o que de fato mudou. Que força foi essa que empurrou essa discussão para uma posição de visibilidade única?
Ano após ano, no entanto, a presença cada vez maior de figuras públicas se assumindo e buscando a aceitação quebrava o teto de vidro do conservadorismo. Mas ainda parecia pouco. Não me parece que o clamor de pessoas abaixo da linha da cidadania tenha sido o suficiente para que as coisas viessem a progredir nesse campo. Algo mudou, desde o final do século XX. E não foi exatamente uma mudança do tipo “evolução” da consciência. Uma série de coisas mudaram no mundo. Houve enfraquecimento do conservadorismo no mundo europeu e suas ex-colônias, na esteira do capitalismo e do discurso científico. Ao mesmo tempo, a ciência médica retira um véu de adoecimento sobre a diversidade humana, ainda que não tenha feito isso de modo completo.
Passa-se a ser normal quando algo é diferente de uma maioria numericamente esmagadora. O século da informação vê a tolerância à diversidade crescer. A normalidade baseada em racismo, imposição de vontades da maioria (religião, senso comum) parecia se acabar, ao mesmo tempo em que esse processo não parecia ser muito seguro. O mesmo mundo confuso e caótico de guerras e diferenças sociais graves era o mundo que dava espaço à diversidade e dava terreno a debates por aceitação e cidadania de pessoas negras, mulheres, pessoas com deficiência ou LGBTQIAPN+. Era e ainda é uma conta que não fecha.
Se a humanidade fosse, de fato, consciente, na esteira da aceitação, ainda que parcial, da diversidade, haveria a compreensão, ainda que parcial da necessidade de destituição do capitalismo predatório do século XX. Mas na verdade, não. A diversidade floresceu, certamente porque, ao longo das décadas do século passado, foi acolhida no seio das contradições capitalistas. Dessa forma, os dez por cento dos estratos humanos que se declaravam ser gays, lésbicas, transgêneros ou outros, por exemplo, passaram a aparecer como sujeitos de vontades e direitos. A luta por reconhecimento e aceitação, começada no princípio da Idade Contemporânea, numa Europa e Estados Unidos em fase de industrialização, há quase dois séculos, começou a dar resultado.
No entanto, quem nos garantiu uma cadeira na mesa da cidadania, ainda que numa posição insuficiente e pouco importante, foi o capitalismo. Nesse sistema capitalista, as pessoas têm de ser livres para consumir. Todos merecem uma carteira de motorista e cartão de crédito (ou conta no banco, ou PIX), como diz a lúcida e contemporânea Maria da Conceição Tavares. Suas reflexões sobre a economia norte-americana, notoriamente a estadunidense, no entanto, aplicam-se a todo o mundo capitalista. Hoje somos identificados como consumidores. Nossos direitos aparecem, na medida em que consumir é preciso. Nas democracias atuais, os sujeitos tornam-se cidadãos consumidores, inclusive da educação, segurança pública, saúde ou justiça e demandam serem tratados assim.
A economista, mais que ninguém, mostrou a um Brasil correndo atrás da industrialização, na segunda metade do século XX, os problemas do pensamento liberal e neoliberal. A pobreza e a discriminação têm uma única base: a distribuição desigual de renda. A pobreza é o principal motor da desigualdade social. O preconceito existe numa sociedade em que os bens (materiais e simbólicos) são distribuídos de maneira desigual.
Imagem de Hans-Jörg Ganslmeier por Pixabay
Esse mundo desigual precisa da pobreza para existir, mas ao mesmo tempo precisa que todos, ainda que pobres, tenham consciência de consumidor, entenda seus direitos e possa colaborar com suas forças para fazer girar a roda da economia. Infelizmente, a nossa reflexão, nesse momento, não é a melhor de todas. O mês da diversidade comemora o quê? Na minha opinião, a ascenção de corpos de exceção ao status de consumidores. Nada mais que isso. A revolução que nos coloca no centro das atenções das grandes marcas, no mês de junho, é comercial.
Isso se prova de muitas maneiras. Mas a principal delas é muito cruel. Basta perceber como o mês da diversidade não comemora o fim do preconceito, nem a sua gradual diminuição, mas infelizmente tematiza a luta contra a permanência do preconceito. A maior tristeza é perceber que o preconceito cede à força do consumo, nem sempre à força da verdade. Para ser sincero, a verdade científica vem atrás, referendando, chuleando, escondendo as pontas daquilo que o capitalismo e seus conglomerados já descobriram. 10% ou mais da humanidade, nós os LGBTQIAPN+ não somos um mercado que se possa dispensar.
Enfim, pagamos um preço muito alto por sermos quem somos. Pagamo-lo duas vezes. Pagamos quando lutamos uma luta inglória que só recebeu apoio depois que perceberam que somos muitos e temos algum dinheiro a gastar nesse mundo. Pagamos quando precisamos desse apoio para continuar nos afirmando como cidadãos no mundo. Ao aceitar esse apadrinhamento, acabamos por nos recortar como consumidores. Milhões de LGBTQIAPN+ são pessoas de baixa renda, expostas à violência, não moram em condomínios fechados, não usam iPhone, não têm dinheiro para participar de cruzeiros temáticos para público adulto. Provavelmente verão toda essa liberdade de telas pequenas em suas mãos, trabalhando em empregos que pagam pouco, em postos de trabalhos preteridos por pessoas brancas, de alta classe, cisgêneras e heterossexuais. A conta nunca fecha e infelizmente, essa é a única liberdade e diversidade que podemos comemorar em junho, no nosso país.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Capa: imagem por Manfred Zajac, no Pixabay
Uma resposta
Palavras potentes e necessárias. Parabéns!