Eu sei que a palavra “mendigo” é inadequada, excludente e pejorativa para se referir a uma pessoa em situação de rua. No entanto, esse termo inundou as redes sociais nesses últimos dias. Tudo por causa de um desse casos bizarros que saem direto do plantão de polícia para a chacota geral das redes sociais. Uma mulher foi flagrada por seu próprio marido, traindo-o com uma pessoa em situação de rua, dentro do carro da família. Alegando ser aquilo um estupro, ele espancou o cara a ponto de ele precisou ser hospitalizado. A polícia foi chamada, a cena gravada em câmeras de segurança da rua. Todos foram parar ou no hospital, ou na polícia.
Enquanto se averigua a realidade dos fatos, o que aconteceu ou não, tem-se o que já se sabe: um marido enlouquecido de ciúmes, uma esposa alegando problemas psicológicos e um homem que ficou ferido, hospitalizado por causa disso tudo. Provavelmente o marido, o personal trainer Eduardo Alves, será culpabilizado pela agressão, pela lesão corporal, fato que possivelmente será atenuado, dadas as circunstâncias do momento.
A piada do momento: a pessoa está em situação de rua ou de vantagem?
Foto publicada nas redes sociais com a seguinte legenda: “Fingindo de mendigo, esperando minha vez de ser ajudado”.
— Filha, dê aos pobres.
— O senhor que manda.
Sem comentários.
De fato, o desejo se orienta para diferentes tipos de corpos, mesmo aqueles que a maioria viria a classificar como grotesco.
Perfis, bizarros. Piadas de mau gosto. Quem de fato sai humilhado nessa história toda?
Mesmo que haja machismo e misoginia atravessando essa história e seus comentários, há uma crítica dos homens a si mesmos, quando ridicularizam o próprio padrão de beleza e masculinidade.
Só que a galera não perdoa. O povo caiu matando. Como uma mulher bonita e com o corpo em forma, tendo ao seu lado um marido igualmente bonito teria esse tipo de atitude? A hipótese do transtorno psicológico parece cair como uma luva. De fato, consola tanto a consciência coletiva do brasileiro, quanto a do marido traído.
Isso me entristece. Porque, se por um lado, as pessoas, inclusive eu, riram-se do fato pitoresco, de mais uma piada de corno que encontramos por aí, eu fico preocupado que o comportamento da mulher tenha sido usado como desculpa para a explicação mais fácil e acessível. Antes de, de fato descobrirmos se a mulher foi tomada de um desejo forte, num momento de fragilidade emocional e psicológica, já estamos dizendo por aí que gostar de “mendigo ” é fetiche. Para tudo! Não é fetiche querer transar com outro ser humano. Embora seja fetiche ser obcecado por partes do corpo humano, de acordo com algumas classificações, embora seja fetiche gostar de gente suja, nada disso é transtorno, ou seja, não é algo danoso e ilegal.
A exposição da coisa toda humilha, antes de tudo, os mais vulneráveis. É preocupante a saúde física e mental da mulher e do espancado. A atitude violenta do marido que fez justiça com as próprias mãos ficou abafada por sua fama de corno. O seu rival parece ter merecido a surra que levou, enquanto a mulher se faz de doida para escapar ilesa. Eis a salada de opiniões nas redes.
Não acho que meu papel como colunista, alguém de quem se espera uma opinião, seja a de ser chato, de mostrar o lado ruim de todas as histórias boas ou vice-versa. Mas, de fato, não dá para negar que é uma história que nos distrai num momento de muita tensão dentro e fora do país, e o excesso de exposição dessa história esconde outras. Distraímo-nos um minuto com o “mendigo” sortudo e um grupo de robôs sobem a hashtag dizendo que o STF é uma vergonha nacional por taxar o Telegram como um aplicativo inseguro e potencialmente perigoso na Internet, num ano de eleições que podem ser prejudicadas pelas fake news. Precisamos ficar de olhos abertos. Nós e o cara em situação de rua, para que ele não acredite mais em mulheres que se aproximam. Falando em olhos abertos, espero que os dele tenham se desinchado.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos